Ainda é tempo de malhar o Judas - por Verônica Inaciola
Uma tradição popular na Península Ibérica que rapidamente se radicou no Brasil, logo nos primeiros séculos da colonização. Quem que com mais de 50 anos não se lembra dessa brincadeira? Segundo Câmara Cascudo, o Papa do folclore brasileiro, no Rio de Janeiro oitocentista “os Judas tinham fogos no ventre e apareciam conjugados com demônios, ardendo todos numa apoteose policolor, extremamente aplaudida pelo povo”. Afinal de contas, esse apóstolo traidor merecia toda punição, por ter levado Jesus ao Calvário. Cenas que ficaram eternizadas, registradas na obra de Debret, mas principalmente no imaginário de uma cultura brasileira que se formava e que se reinventava nos seus contínuos fluxos, tão comuns aos grupos humanos, mas sem portanto perder seus mitos geradores, que chegaram com esse catolicismo barroco, já bem diferente dos ditames de Roma.
Brincadeiras que logo chegaram nos arrabaldes das cidades, ou seja, o que no século XX já conceituávamos de periferias. Aí sim, sem nostalgia, mas com uma lembrança afetiva de um tempo em que logo após os rituais da Sexta-Feira Santa, nos reuníamos e passávamos a madrugada confeccionando o boneco de pano, palha, entre outros artefatos, e o pendurávamos em galhos de árvores ou postes para nos vingarmos daquele apóstolo traidor, não só dele, mas também dos que de certa maneira, incomodavam e oprimiam a nossa vida cotidiana.
Assim que soavam os sinos da Aleluia litúrgica, iniciávamos o seu julgamento, que sempre sentenciava a sua depredação e queima, uma forma lúdica de afastarmos todo mal que nos ameaçava. Os versos e as sátiras criadas para ilustrar mais ainda esse momento, eram colocados nos bolsos do boneco ou penduradas aos seus pés e retiradas antes da sua destruição para serem lidas em alta voz, na crítica oportuna aos políticos, vizinhos, gente maldosa. Era então chegada a hora da revanche, pois afinal de contas somos humanos!
Embora tradições como essas sejam reinventadas, ou mesmo esquecidas no tempo, pois os fluxos e contrafluxos causados pela dinâmica da cultura trazem novas formas de se relacionar com as dores e as alegrias do mundo, precisamos encontrar caminhos que nos afaste do ódio que tem levado ao calvário crianças inocentes no campo sagrado que é a escola, seja pela violência dos que ceifam as suas vidas, ou pela prática de currículos capengas que não lhes oportunizam um caminho para romper com as desigualdades sociais.
Neste sentido é que ainda precisamos malhar o Judas da ignorância, das desigualdades, do racismo e do ódio, pois sabemos que esses sentimentos se camuflam e sempre que detectam uma oportunidade eles emergem para disseminar a destruição. Esse repúdio pode acontecer de maneira virtual ou presencial, nas várias expressões artísticas, nos rituais religiosos e também nos atos políticos, não importa a forma de expressão, o importante é surtir efeito para promover uma ressureição de atitudes do bem, uma renovação de mentalidades e assim entendermos também a Páscoa como um ato de subversão, conforme aconselhou Dom Hélder Câmara.
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Verônica Inaciola é Doutoranda em Ciências da Religião, Mestre em Ciência da Arte e Pedagoga