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Capitão Rodrigues - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Reprodução internet
Foto: Reprodução internet

Nos idos anos 80, Rodrigues foi reformado pelo exército brasileiro com uma grande festa de despedida. Não houve na história do Terceiro Batalhão de Infantaria um oficial mais austero, mais eficiente e mais apaixonado pelo Exército brasileiro. Até o mais bravo dos oficiais deixou uma lágrima escorrer quando Capitão Rodrigues cruzou o portão de saída para nunca mais voltar a comandar uma guarnição, sem mesmo olhar para trás, de cabeça erguida e olhos à frente sem demonstrar nenhuma emoção.


Rodrigues criou um casal de filhos com o mesmo rigor que tratava seus comandados no quartel, os filhos não têm nenhuma lembrança de carinho recebido do pai. A moça formou-se odontóloga, casou-se com o namorado de infância e deu a Rodrigues um casal de netos que ele só olhava de rabo de olho e reclamava do barulho quando as crianças estavam em visita a sua casa.


O rapaz seguiu os passos do pai, fez academia militar, durante todo o curso foi o primeiro da turma e na formatura lá estava Rodrigues, com aquele mesmo semblante sisudo que marcou a vida inteira dos filhos. Rodrigues foi o escolhido para colocar a insígnia nos braços da farda do filho, agora oficial e nem mesmo um abraço deu, limitou-se a estender a mão e apertar com força como era seu costume ao encontrar com os velhos amigos. Nenhuma palavra de carinho, nem um olhar de emoção. Rodrigues é uma pedra.



Naqueles anos o carnaval de rua era uma festa só, muitos foliões nas ruas e os salões dos clubes lotados. Eram bailes de todos e para todos, naqueles dias a metade da cidade estava sobre a outra metade da cidade numa alegria sem fim. Rodrigues detestava carnaval, dizia que era coisa de pederasta, de marginal, de vagabundo e de mulher sem qualidade e o filho fazia coro com ele.


Quando o carnaval chegava o filho de Rodrigues mandava a mulher e os filhos para a casa da sogra e sumia na mata em treinamento militar, Rodrigues não saia de casa, se trancava no quarto cedo e não queria ver nem a cara da santa esposa que passava o carnaval todo em casa, só saindo para ir à missa.


Naquele ano tudo feito como de costume, o filho de Rodrigues foi para o treinamento, Rodrigues se tranca no quarto e a mulher de Rodrigues vai à igreja. Na televisão o grande baile gala gay acontecia, a televisão mostra uma Marylin Monroe com um minúsculo maiô realçando suas curvas e valorizando suas grossas e roliças coxas, a repórter pergunta seu nome e ela responde: Marcelly Ferguson. Na cama, se contorcendo, Rodrigues sonha com Marcelly de olhos abertos, mordendo a fronha do travesseiro num arfar adolescente até o baile acabar.



Na quarta-feira de cinzas Rodrigues sai do quarto deixando lá dentro seu segredo trancado a sete chaves. A esposa está passando o café e a vida volta ao normal. O filho chega do treinamento, entra no quarto de ferramentas, guarda sua mochila, tranca, guarda as chaves no bolso e vai para o quarto descansar pois no dia seguinte tinha muito trabalho no quartel.


Antes do carnaval da virada de década Capitão Rodrigues reformou-se da vida e teve um enterro digno das maiores homenagens, com direito a cortejo feito pela cavalaria e tiros de festim. Entregou sua alma ao criador sem saber que na mochila que o filho guardava no quarto de ferramentas estava o maiô e a peruca de Marilyn Monroe e nunca reparou nas olheiras da mulher que enquanto passava o café recordava os amassos que dera no sofá da sala com a vizinha Dinorah e, ainda que os dois netos não eram filhos do genro e sim do melhor amigo dele.


Descanse em paz Capitão!


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.





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