Complexo do Caveirão ou prédios ocupados do Galo Branco - por Erick Bernardes

"Há alma em todas as coisas. Cada coisa de nossa vida urbana construída tem importância psicológica", afirmou o escritor James Hillman (2010, p. 81). O que isso quer dizer ao certo não sei, confesso não ser capaz de formular ideias plenas. Mas a reflexão promove uma conexão mental acerca dos objetos arquitetônicos que a humanidade construiu, e isso me deixa inquieto.
Quando deparo com o prédio ocupado lá no bairro Galo Branco, sou forçado a enxergar certo fantasma em sua arquitetura sombria e a perceber a áurea catatônica a revestir suas colunas e paredes sem rebocos, tal como membros descarnados e sobreviventes das negligências dos homens. Seria um tipo de prosopopeia da péssima administração pública que se enraizou nas estruturas sociais do nosso município? É só olhar. A imagem nos salta aos olhos.
Os prédios denominados Conjunto Residencial Maricá, localizados na Avenida Jornalista Roberto Marinho, 654, no bairro do Galo Branco, município de São Gonçalo, permanecem de pé, habitados por cidadãos que se apossaram das suas dependências. Também apelidados de Complexo do Caveirão, devido à ausência de janelas nos andares superiores, semelhantes a órbitas vazias das caveiras humanas, essas construções existem há tempos e contam mais de duas décadas de habitação irregular. Meio tétrico o tal apelido do prédio, não é? Impossível não reconhecer nele uma dose de angústia, definitivamente sinistro.
De acordo com o jornal O São Gonçalo, o conjunto "começou a ser erguido no mês de março de 1990. Ele é formado por dois blocos de quinze andares. As obras foram paralisadas em junho de 1994, com 71% dos serviços executados, conforme última medição realizada no período. Em 1996, ele foi invadido pela primeira vez, e as famílias acabaram sendo despejadas. Ele sofreu mais duas tentativas de ocupação e a última tem aproximadamente 17 anos" (FREITAS, 2018, s/p). Trata-se de um objeto de engenharia um tanto quanto melancólico erigido quase na beira da rua. Ocupado, depois evacuado. Ocupado de novo, embora na segunda vez não tenham arredado pé.
Dizem até que o Caveirão tem sistema de segurança com câmeras e tudo. Energia elétrica, há também porteiro e funcionários encarregados da limpeza do lugar. Quem mora lá contribui com 50 reais de taxa de condomínio. Porém o valor não é obrigatório. Consciência de classe, talvez.
De longe a silhueta do prédio se destaca. "Anoréxico", diria o especialista em modelos humanos fotográficos, se visse os referidos apartamentos e os comparasse com gente. "Patológico", anunciaria o fisiologista ou terapeuta em suas avaliações. Mas o certo é que a beleza importa a qualquer sociedade. Claro que importa, caso contrário a aparência feia não me chocaria tanto assim, uma construção inacabada, definitivamente ruim em se tratando do quesito visual. Contudo, as vidas importam mais, acima de tudo parece arriscado residir ali.
Um prédio que tem história sem final feliz para contar, abandonado pelo poder público como a maioria dos munícipes, sem conclusão da sua alvenaria, ele incomoda a paisagem local. Não se assemelha aos pobres das grandes cidades negligenciados pelas instâncias maiores de governo? Isso aí, até incomodarem as vistas de quem passa e não suporta a desarmonia urbana. E ninguém faz nada (nem eu), pobre narrador retórico.
FREITAS, Marcela. "Tragédia em São Paulo liga o alerta sobre ocupações em São Gonçalo". O São Gonçalo, São Gonçalo, RJ, 2018.
HILLMAN, James. O pensamento do coração e a alma do mundo. Campinas, SP: Verus, 2010.
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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.
