O que um ambulante com deficiência me ensinou sobre São Gonçalo, por Mário Lima Jr.

Sinto muito por você não contar com melhores condições de vida. Por não ser tratado com respeito e dignidade. Mesmo assim, unidos podemos ajudar uns aos outros e superar nossas dificuldades. É o que eu gostaria de dizer tanto para o município de São Gonçalo quanto para o ambulante com deficiência que vi vendendo balas no sinal de trânsito do cruzamento entre a Rua Laureano Rosa e a Avenida Maricá (a família Marinho já recebe homenagens, e dinheiro, demais).
Talvez uma má formação congênita, o pé direito do vendedor era dobrado pra dentro, em um ângulo de quase 90º na direção da outra perna. Arrastando um par de chinelos, ele literalmente pisava sobre o tornozelo e tentava correr assim pra ter uma chance de alcançar mais veículos parados quando o sinal de trânsito fechava. Mas não conseguia. Depois de colocar o saquinho de plástico com umas seis balas de hortelã e a mensagem “Me ajude a criar meus bacuris” no para-brisa dos carros, o ambulante precisava voltar todo o trajeto o mais rápido possível, pisando torto, às vezes pulando e outras puxando o pé deficiente antes do semáforo abrir.
Articulações não foram criadas para serem pisadas, qualquer pessoa que fizer o mesmo sentirá uma dor terrível. A habilidade de se locomover, ainda que com restrições, provavelmente foi desenvolvida sob sofrimento físico e psicológico. São Gonçalo também se sustenta com sofrimento porque não tem as ferramentas que carece para sobreviver, quem sabe um patinete elétrico. E porque não investe em atividades mais apropriadas, que poderia se dedicar.

São Gonçalo anda cem metros para frente e a mesma distância para trás. Vende algumas balas, mas nada que supra as necessidades do dia ou supere a performance comercial dos seus concorrentes. Caso não mude profundamente sua estratégia de gestão política e econômica, jamais a vida de seus moradores sofrerá uma transformação significativa. Tentando ser alguém diferente, São Gonçalo deixa os cabelos cacheados crescerem até os ombros e passa um creme para reduzir o volume. Enquanto estiver envergonhada, sua beleza natural não será conhecida ou bem explorada.
São Gonçalo pode ter pleno sucesso do jeito que é, o que não significa se destacar nacionalmente por riqueza. A cidade só precisa aplicar sua generosidade e inteligência nos próprios projetos ao invés de tentar fazer aquilo que parece mais fácil e bom só porque outros municípios estão fazendo. As melhores soluções nascerão com os gonçalenses, como suas deficiências nasceram. Isolada, São Gonçalo pode não ter as vantagens históricas de quem foi capital imperial ou estadual. Como o vendedor não tinha a agilidade dos outros ambulantes, mas sua força e resistência eram muito maiores. Integrada com seus moradores, São Gonçalo será capaz de experimentar, aprender e cobrir o território com suas habilidades, do comércio popular às artes, sem se esquecer da sua tradicional alegria.

Mário Lima Jr. é escritor.

