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Minha cidade é assim, por Mário Lima Jr.



No final da tarde, depois de um dia de forte calor, eu abro as cortinas e a janela da sala para entrar um pouco de ar fresco. Da janela, vejo o sol de verão se pondo, e ao lado do sol, pipas mais coloridas do que o arco-íris. Raias, cortadeiras e a molecada gritando lá fora, dizendo que “cortou geral”.

Quando ando no maior centro comercial da minha cidade, qualquer preocupação vai embora. É difícil ficar triste ou deprimido no meio de tanta gente. A vendedora de chips para celular toca no meu ombro e me chama de “meu bem”, a moça que anuncia serviços de dentista prefere chamar os pedestres de “amor”. Não há outro lugar no mundo tão caótico e com tanto calor humano.

Nosso prefeito anda nas ruas de camisa aberta, arrastando as pernas e a barriga devagar, e está disponível para tirar selfies com os eleitores, com um sorriso infantil e sincero no rosto, basta pedir. Simpatia não falta, pena que não tenha criatividade e capacidade de inovação.

Numa tarde de sábado, perto do horário do almoço, fui comprar um pincel. O vendedor me perguntou: “Amigo, quer mais alguma coisa?”. Antes que eu pudesse responder, chegou outro cliente e a situação se inverteu. O cliente perguntou ao vendedor: “Amigo, tem fita isolante?”. Eu percebi que não estava em uma cidade comum. Parece que somos todos amigos (exceto a bandidagem, claro).

Até alguns idosos do meu bairro soltam pipa. Sabem aproveitar a vida. Meus amigos de infância, hoje adultos, se encontram com frequência, organizam churrascos, batem papo no bar. Se divertem, mas também choram juntos, quando necessário.

Minha cidade tem fazenda do século 17 onde acontecem campeonatos de futebol, a criançada anda de bicicleta, adolescentes jogam basquete, praticam parkour. É o nosso parque ao ar livre. Abandonado pelo poder público, não pela população.

Na arquibancada do humilde campo de futebol, o nível de intimidade entre as pessoas supera o do Maracanã. O povo da minha cidade não se sente constrangido entre desconhecidos, e olha que vivem mais de 1 milhão de pessoas aqui, não é pouca coisa. As pessoas se sentam muito perto, descansam a perna na perna da outra, quase se abraçam. Aqui somos praticamente iguais, não há camarote entre classes sociais.

A cidade exporta grafiteiros, escritores, programadores, professores, acadêmicos e muito mais sem nenhum incentivo público, verdadeiro milagre. Quem vai embora costuma nunca mais voltar, mas nem por isso ela para de exportar talentos.

Uma vez caí com o carro do meu pai em um buraco enorme e o carro ficou preso, caído de lado. Fiquei assustado com a besteira que fiz. Não precisei pedir ajuda, apareceu um, depois outro, quando me dei conta, em poucos segundos, havia dois homens subindo em cima do carro para nivelá-lo, e outro grupo de pelo menos quatro pessoas começou a empurrar o veículo. O pessoal salvou a minha pele e não deu tempo nem de agradecer, foi cada um para um lado, com a mesma velocidade que chegaram. Eu moro em São Gonçalo.


Mário Lima Jr. é escritor.

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