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As pérolas da civilização, no romance de Gilvan da Silva


O romance de Gilvan Carneiro da Silva é um daqueles livros escritos em terceira pessoa e riquíssimo de figuras de linguagem e construção narrativa: metáforas, prosopopeias, animalizações, enfim, tudo a engrossar o caldo desse caldeirão memorialista chamado Pérolas aos ratos.


Ao privilegiar a figura dos roedores domésticos, Gilvan Carneiro da Silva toma como viés psicológico o lado abjeto do submundo das nossas mentes, onde, não raro, fantasias, medos, prazeres, se misturam naquilo que se convencionou chamar de subconsciência. O romance de Silva conta com inteligente prefácio do professor Rubens Dias dos Santos, donde, já na apresentação, seu enunciado questiona os caminhos por que os homens têm percorrido: “Por quais terrenos caminha nossa consciência? (...) quem poderá prever o nosso próximo passo?” (p. 4). São, portanto, essas perguntas que movem também as ciências humanas, acerca da eterna vontade de se descobrir o segredo da vida.

Lembrando que o gonçalense Gilvan Carneiro da Silva é arquiteto de profissão e, não por acaso, a metáfora da casa e sua arquitetura colonial preenche a malha textual do início ao fim da trama, evidenciando certa intimidade do artista para falar de construções prediais e a temática do desequilíbrio mental. Ademais, uma das personagens, a Márcia, que mantém um relacionamento incestuoso com o pai, é psicóloga de profissão e possui consultório na capital. A família é do tipo tradicional, cujo passado revela uma história de opressão colonizadora que se estende até o tempo presente da enunciação, representando a decadência de uma sociedade e sua derrocada de valores por meio da desconstrução moral familiar e um desenlace sobremaneira trágico. Por outro lado, a casa, sede da antiga fazenda da família dos Bernardos, se afigura um tipo de consciência refletida por uma voz narrativa onisciente, que em seu interior abriga homens, animais, coisas, lembranças, cheios de mistérios de que só essa consciência maior, a casa, saberá.


Personagens como Marcos e Marcelo, filhos legítimos mas que possuem comportamentos contrários, dão o tom das querelas familiares que nos fazem recordar os clássicos Esaú e Jacó. Além disso, o referido incesto na família dos Bernardos passa quase despercebido quando visto pela naturalidade com que a filha de Marcelo encara a situação incestuosa — e isso imprime um quê de sensualidade e erotismo no enredo. A intertextualidade é clara na obra de Gilvan da Silva; varia de Kafka, D. H. Laurence e, principalmente, Machado de Assis, com a clássica referência aos “olhos de ressaca” da suposta figura (traidora ou não) arquetípica de Capitu, da obra Dom Casmurro, passando pelos filósofos e sociólogos mais diversificados, Marx, Weber, Durkheim, Schopenhouer, Kierkegaard, Heidegger, por exemplo, com vistas à interação discursiva.

Em resumo, está clara a posição do narrador em denunciar o materialismo que leva à paralisia social. Entretanto, essa voz que narra não emite juízo algum de valor que traga prejuízo à obra literária. Pelo contrário, Gilvan Carneiro da Silva, que é exímio poeta, trabalha nos interstícios do discurso e oferece ao leitor essa inteligente prosa romanesca, que é Pérola aos ratos, buscando reforçar a sua marca psicossocial sobre os fragmentos da loucura.


SILVA, Gilvan Carneiro da. Pérolas aos ratos. Rio de Janeiro: OR Editor, 2003.


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