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A reconfiguração nostálgica de 'Entrementes', contos de Marcio Avelino

Por Erick Bernardes

O título do livro de Marcio Avelino nos remete aos mais variados modos de entrada nas histórias e nos livra dos embaraços do começo característico de uma resenha literária. Por isso, vamos ao ponto, nos joguemos ao que interessa, vejamos o volume de contos Entrementes (2019).

A obra de estreia de Marcio Avelino, Entrementes (2019), publicada pela Editora Bem Cultural, é um daqueles livros que não dão conforto ao leitor, por causa do insistente psicologismo que, muitas vezes, resvala no enfoque mórbido representado nas vozes dos seus narradores. O livro traz ainda o inteligente prefácio do professor e também escritor Lázaro Cassar e a capa de Rodrigo Santana. Ressalta-se que, longe de construir um mundo colorido, inerte e algo fantasioso, os textos em questão se valem de pequenas histórias cotidianas às quais se confundem com os espaços circundantes e os problematiza. Nascido em Duque de Caxias e morador de Magé, Marcio Avelino é graduado em Letras pela FEUDUC e figura frequente nos eventos literários da nossa São Gonçalo. Ele se diz um amante da cidade e se autodenomina também um papa-goiabas, apelido carinhoso a que os gonçalenses são muitas vezes referidos. Os contos de Entrementes são permeados pelas experiências do artista que se alimenta das músicas de Belchior e Luiz Gonzaga e as reconfigura por meio da literatura neste que é o seu livro solo inaugural. No primeiro conto, “Porta entreaberta” (p. 13-17), o espaço rural aponta a preferência pelo corriqueiro, quando o leitor encontrará um mundo nostálgico, cuja intuição o fará pensar numa possível autorreferência típica das prosas cotidianas, tal como se fossem (se não forem de fato) vestígios das reminiscências familiares: os avós do narrador e alguns conhecidos.

Pode-se dizer também que, na escrita de Avelino, a realidade dura da memória aparece reconfigurada, como são sentidas as vidas das muitas famílias de trabalhadores desse nosso Brasil, conforme fica evidente no conto “O senhor patrão de meu pai” (p. 19-27). Ou seja, Entrementes (2019) chega pra instigar quem o lê, por meio da sua literatura memorialística e provocadora, porque de percepção crítica. Noutros momentos, questões linguísticas e escatológicas são claras na construção das estruturas textuais, a exemplo do conto “O aviso da morte” (p. 29-34), quando certos elementos do cotidiano do próprio artista se assemelham ao típico realismo, aproximando seu estilo do sombrio, quando as escolhas decidem pela fatalidade das coisas em tom confessional. E isso Marcio Avelino faz muito bem, pois a confissão dos contos aqui referidos funciona como lápides marcando a alma dos seus narradores, conforme aparece na descrição da morte de um dos personagens: “A carroça, velha, não aguentou os solavancos e, aos poucos, foi-se despedaçando. A queda foi fatal” (p. 41). Poderíamos, enfim, enxergar a carroça aqui referida em alusão à vida decadente do personagem do conto? Está aí, uma questão de escolha, mas vale mesmo é problematizar.


Noutro caso, a voz do cão narrador se assemelha à prosa fabular (mas, que fique claro, essa voz fabular somente se assemelha), dado o revestimento moralizante que encobre algo maior, a saber: a carência afetiva típica do mundo contemporâneo. Tais procedimentos nos levam a crer não serem só esses traços de fantasias edulcoradas das fábulas e parábolas os elementos tocantes no quesito reflexão. Em “O menino da caixa de papelão” (p. 43-48), por exemplo, temos um mistério a ser desvendado, segundo o qual se liga à melancolia evidenciada pela cena cujo rosto de um dos personagens, “figura debilitada”, aparece sob “um misto de tristeza e resignação” (p. 48). E, ainda, por que não comentar a alusão desvelada acerca do romance naturalista O Cortiço, de Aluízio Azevedo? Romance este que é cheio de personagens em seus calores de abafo e suores; até a Rita Baiana (aquela do Azevedo) aparece também na obra de Avelino (p. 72). Soma-se a isso o diálogo temático com Vidas Secas (p. 73), ou até mesmo a reconfiguração intergênero com a estética de Augusto dos Anjos (p. 77).


Enfim, o livro de Marcio Avelino é sem dúvidas um volume capaz de nos fazer refletir sobre a efemeridade da vida; semelhante a uma carta de família falando de perdas e saudades, sem os exageros das paisagens e seus falsos coloridos. Eis aí uma boa indicação de leitura, parabéns ao autor de Entrementes (2019) e parabéns também ao leitor por ter agora essa excelente opção de leitura.

AVELINO, Marcio. Entrementes. Petrópolis, RJ: Bem Cultural Editora, 2019. 112p.

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