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Arrastão, as setes cruzes e a história desconhecida, por Erick Bernardes


Recomenda-se escrever do mesmo modo que os açougueiros fazem os seus serviços. Eles começam a escolha da carne, afiam a faca no amolador, talham os primeiros cortes, aparam arestas de sebos e gorduras, talham novamente, voltam a afiar a faca. Calculam de cabeça o valor dos bifes, jogam na balança e acertam mais ou menos o preço.


Por que estou falando sobre isso? Simples, estava em um daqueles tradicionais açougues de bairro, esperando o funcionário que me contaria a história do Arrastão. Eu aguardava pacientemente o açougueiro chamado Patrick, pois foi ele quem aceitou me explicar a origem do lugar onde vive desde menino. Pois é, meu narrador é morador do Arrastão e afirma amar a comunidade e também a profissão que escolheu. Sim, exato, gosta daquele açougue do tipo tradicional e simpatiza sobremaneira com o território onde reside. Raridade dupla: a maioria dos bifes da nossa alimentação é hoje processada em supermercado e, além disso, quase ninguém sabe explicar a verdadeira história do bairro Arrastão, município de São Gonçalo.

Enquanto me encarava nos olhos e contava sobre os velhos tempos em que o avô se apossava do terreno no sopé do morro em que mora, Patrick dizia ao freguês o preço da carne que vendia, envolvia a peça de alcatra na primeira embalagem que é plástica e narrava mais um pouco:


— Cara, a história de lá não é tão feia como pintam, não. A parte que fala das Sete Cruzes é que dá dó na gente. Morreram sete pessoas numa tragédia da rodovia. Saiu até no jornal da época, minha mãe falou, daí terem resolvido fincar as sete estacas cruzadas pra fazer lembrar a galera que passa na rua. Um tipo de aviso, sei lá, mostrar que a vida é breve e a estrada é perigosa. Mas aquele lugar já teve plantação de banana, laranja e abasteceu Tribobó, Arsenal, Rio do Ouro e muito mais. Ouvia muito isso. Meu avô plantava o aipim com o qual vovó fazia bolinho pra vender no terminal de ônibus de Niterói. Criaram oito filhos e uma penca de netos assim. Eu mesmo ajudava papai a gritar o preço dos bolinhos o dia todo de frente das filas dos passageiros e carregava a bisnaga de catchup apimentada. Daí que seu Antonio, meu patrão, me pegou pra ensinar a trabalhar no açougue — e estou aí, até hoje, graças a Deus! Porque viver de vender salgado na rua é passar necessidade.



Bem, confesso a você, caro leitor, ter percebido certa nostalgia no olhar do rapaz. Embargo na voz, sorriso amarelo, movimentos desacelerados. Uma pausa. Enrolando agora a peça de carne no papel grosso e cinza, Patrick dá mais uma ajeitada no embrulho e põe na sacola. Somente depois de feito tudo isso é que ele entrega a carne selecionada, embalada, pronta para compor o almoço do freguês. Refleti um pouco, impossível não tecer reflexões. Quem se aventura a escrever para jornal aos domingos deve agir da mesma maneira, pensar muito no que oferecer.


Só lembro que durante a espera da hora conveniente pra ouvir o resto da narrativa, apoiei cotovelos no balcão e sorri. E deu certo, pois Patrick desembuchou de novo.


— Então, seu Erick, aquilo tudo lá perto era uma fazenda chamada Boa Esperança. O pessoal cortava madeira e arrastava os troncos puxados por bois ou jegues até uma fábrica de móveis em Santa Isabel. Meu avô contou. Verdade ou não, origem do nome está aí. Cresci ouvindo isso. Era o caminho de arrasto das toras para a fábrica. As madeiras só desciam, é morro né, torna-se fácil o arrastar dos troncos. Tudo uma propriedade só, depois fatiaram a fazenda, e o apelido virou nome, registro territorial: Arrastão. Há muita roça ainda perto da minha casa, mas já está bastante habitado, principalmente a parte próxima das Sete Cruzes. É ruim de água, abastecimento precário, a gente puxa com bomba lá do Anaia pra encher a cisterna.

Tão logo o açougueiro simpático tirou o avental, percebi ter chegado a ele o fim do expediente. Hora de cada um seguir seu rumo. Agradeci prontamente. Um abraço apertado e a promessa de fazermos juntos um churrasco maneiro: "— Se a carne baratear, claro! Onde se ganha o pão, não se come o bife", gargalhamos da restrição proteica.


E é assim que se consegue mais uma história gonçalense. Com testemunho real, emoção aflorada, amizade nova. Pois a crônica não foi feita para encher linguiça, tampouco satisfazer vaidades. Já dizia o nosso Graciliano Ramos, a palavra não foi feita enfeitar, a palavra foi feita para dizer.

Erick Bernardes é escritor, professor e mestre em Estudos Literários.



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