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Cazuza - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Tantos e tantos cazuzas/Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Tantos e tantos cazuzas/Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ele tem um rosto bonito, maltratado pelo tempo e pela pobreza, mas é bonito. Tem olhos verdes e é musculoso, ou melhor, seu arquétipo tem o estilo dos ginastas, lutadores, jogador de futebol, halterofilistas, sabe lá, ele tem aquele jeitão de forte, me parece que teve lindos dentes, hoje os poucos que tem estão amarelos e roídos pelas cáries, é falante e contador de histórias, onde ele está a alegria se faz presente, todo mundo gargalha, é uma história atrás da outra.


Fiquei por vários dias observando o seu ir e vir e os olhares das mulheres que moram ali na rua na frente do posto de saúde municipal. Ele não parava quieto nem quando eu aparecia com cigarros e bebida, parecia um mico daqueles que ficam nas árvores do centro da cidade esperando as pessoas jogar frutas para eles, descem e sobem nas árvores até se sentirem seguros para pegar as frutas, são muito desconfiados, assim é Cazuza.


Sempre pegava um cigarro e saía de perto de mim rapidamente, ao contrário de alguns que sempre queriam mais um cigarro ou um trocado para comprar “pão”, vocês sabem o que quero dizer. Um dia o vi num raro momento de solidão com uma foto de revista nas mãos, quando me aproximei ele guardou a foto como a escondê-la, quando ele já ia se escorregando de mim instiguei sua cobiça:



_Quantos cigarros você quer pra conversar um pouco comigo?


Ele não me deu ouvidos e saiu correndo, cara difícil esse Cazuza! Subi a rua do pronto socorro central para encontrar com os outros moradores de rua e detrás de um táxi pulou Cazuza me assustando, veio em minha direção coçando a cabeça e sem me olhar nos olhos falou:


_Dois maços, dois maços de cigarro e uma meota.


Meota é o que ele chama de uma garrafa pequena de cachaça, uma bojudinha. Falei:


_Tá legal, amanhã à tarde trago e te entrego lá na praça, mais vai ter que falar tudo o que eu perguntar.


Ele novamente deu um pulo, só que para trás e falou em voz alta, quase gritando:


_Eu não entrego (delato) ninguém e não fiz nada de mal pra ninguém, o que você quer comigo? É veado? Se for eu tô fora, meu negócio é mulher!


Aí quem gargalhou fui eu e falei com ele:


_Não quero que você fale mal de ninguém, não quero saber se você fez alguma merda e nem sou veado. Amanhã a gente conversa lá na praça.


Fui embora rindo daquela situação. Também o que eu esperava ouvir querendo conversar com um rapaz que nem conheço e oferecendo cigarros e bebida? É pra rir mesmo.


No dia seguinte cheguei à praça e ele já estava lá. Pegou os cigarros e a bebida, acendeu um cigarro, deu uma golada na garrafa, se sacudiu todo, a bebida é forte. Depois falou:


_ Então, qual é?


_Quero saber de sua vida, desde que você nasceu até agora.


_Tem nada de muito pra falar, eu nasci na rua, lá em Niterói, todo mundo me chama de Cazuza, não me lembro da minha mãe, ela morreu quando eu era pequeno, chamava ela de Baía, um dia ela dormiu e eu fui brincar no Campo de São Bento quando voltei ela não estava mais, as coisas dela estavam lá, até um pouquinho de dinheiro que ela escondia estava lá mas ela não.


Tinha um monte de gente lá dizendo que ela tinha morrido e o rabecão levou. Uma moça com um homem me pegou a força e me levou pra uma casa cheia de criança sem pai nem mãe, a gente brincava, comia e dormia, era legal ficar lá, o ruim é que todo dia de tarde tinha que rezar e domingo o padre ia fazer missa e perguntar pra gente o que tinha feito de errado. Às vezes aparecia gente querendo levar a gente pra casa pra criar, alguns foram pra nunca mais voltar, eu sempre corria, me escondia, esperneava, chorava, não queria ir de jeito nenhum, os maiores diziam que iam fazer sabão da gente.


Depois é que aprendi que eles não queriam que a gente fosse pra eles não ficarem sozinhos. Quando já estava bem grandinho apareceu um moço chamado Arnóbio, falava macio e andava devagar, ficava olhando pra gente com uma cara séria e um dia levou um monte de bombons pra gente, de outra vez levou barras de chocolate, outra vez levou bolo e refrigerante, cantamos parabéns não lembro pra quem, pra mim não foi, sei nem que dia eu nasci.


Sei que Seu Arnóbio foi se chegando e um dia pediu pra passar uns dias na casa dele, se eu gostasse podia morar lá, ter meu quarto, uma bicicleta e um montão de brinquedos, eu não tinha o que perder. Eu fui não vou dizer o que aconteceu, só digo que não gostei dele e nem da casa dele. Fugi de lá e fiquei pela rua um tempão, eu gostava de ver a praia, ver as garotas de biquíni e “sair na mão” atrás das pedras.


Até que um dia fui pedir comida na porta de um restaurante um uma moça perguntou se eu queria ir a casa dela, poderia tomar banho, ela ia me dar roupa e comida e se eu quisesse ficar podia. Eu pensei, pensei, lembrei da casa de seu Arnóbio... E se ela tivesse marido? E se fosse igual a seu Arnóbio? Pior, e se fosse seu Arnóbio? Falei que não, mas ela insistiu com tanto carinho e me olhava que nem mãe, aí não teve jeito, fui.


Assim como ela prometeu, me deu banho, comida e roupa, tinha uma cama cheirosa e uma televisão grandona no quarto e ela disse que eu podia dormir lá, vendo televisão, me deitei e dormi tão rápido que nem deu tempo de ver o que passava na televisão, acordei de madrugada com ela me alisando, fingi que estava dormindo e fiquei quietinho, quando ela segurou nas minhas “coisas” eu fui na lua e voltei, ela ficou esfregando minhas “coisa” nela e tocando siririca e gemendo cada vez mais alto, quando ameacei acordar ela parou tudo e ficou me ninando igual neném, eu já era malandro e sabia o que estava acontecendo mas fiz o jogo dela, ela pensou que eu estava dormindo e continuou até cansar, depois levantou, me cobriu e foi embora, naquele dia quase que fiquei em carne viva de tanto “sair na mão.”


Fiquei um tempão lá mas esse negócio de ficar saindo na mão não estava bom não e uma noite voei em cima dela e cravei nela, foi bom demais, só que de manhã ela estava era puta. Não queria mais que eu ficasse lá, não entendi nada, me deu dinheiro e mandou eu ralar peito, mulher maluca! Caí na rua de novo e vivo por aí. Já comi muita mulher, até veado também pra arrumar um dinheiro. Teve um que queria morar comigo, me dava casa e comida, dinheiro, carro e tudo, era legal mais eu quero ficar na rua, pra que ficar em casa? Só chateação. Na rua eu que mando em mim. Só nunca roubei ninguém e nunca matei também.


A rua é igual cadeia, ninguém é culpado de nada.


Eu perguntei a ele quanto tempo ele está na rua de novo depois que saiu da casa da mulher, ele não sabe. Não tem noção de tempo, não tem documentos, lê com muita dificuldade, é inteligente, fala bem e repara em tudo ao redor, seus olhos não param quietos, não tem conteúdo de vida, é um número estatístico. Antes que eu pudesse voltar aos assuntos pra saber detalhes ele sumiu por entre as árvores.


Todas as vezes que me vê corre. Tem nada não, um dia eu pego ele de novo.

 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.





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