top of page

Coisas da pandemia X - por Paulinho Freitas


Foto: Reprodução Internet
Foto: Reprodução Internet

Nestes tempos de estio da pandemia alguns desavisados acharam que a praga tinha se dissipado feito a fumaça do cigarrinho que Mário Corrêa fumava todas as tardes em sua varanda, relembrando sua juventude, seus tempos de samba e boemia, as tardes deitado no fundo da canoa lá na então deserta Praia das Pedrinhas junto a Maria José, uma rôla de nêga, conforme ele costumava dizer e que lhe deu uma filha e essa filha lhe deu seis netas e um neto. Todos estudando, trabalhando, construindo um futuro. Menos ela, a neta preferida, a única que conseguia arrancar um sorriso daquela boca de avô mal humorado.


Os homens quando chegam a certa idade têm essa mania de não sorrir, de mostrar ao mundo que homem não sente nada, é imune a sentimentos e emoções. O ser humano ainda tem muito que aprender. Essa menina não queria estudar, nem trabalhar e nem nada que não fosse madrugadear, parecia o avô em seus áureos tempos. O pai, Zé Elias, fazia de tudo para aquela menina tomar jeito, até umas tapas na bunda lhe deu num dia em que ela lhe faltou com o respeito falando um pouco mais alto, mas ela não tinha jeito.



Zé Elias fez um sobrado, o quarto das filhas ficava na parte de cima da casa, já preparados para que a menina não pudesse sair sem ser vista. Zé Elias montava guarda na sala, se ela quisesse sair teria que passar por ali, mas a menina era danada, improvisou uma corda de lençóis, daquelas que os detentos usam para fugir da cadeia e quando Zé Elias chegava ao quarto das meninas pela manhã a cama da menina estava intacta. Ela era impossível de se lidar.


Antes da pandemia apareceu grávida e foi uma confusão danada. Zé Elias queria matar o rapaz que a engravidou, comprou até arma, mas Mário Corrêa pulou na frente, tomou a arma do genro, fez valer sua autoridade de pai e avô e fez a harmonia do lar, na medida do possível, voltar à normalidade. Os grávidos não ficaram juntos e nasceu Henrique, o xodó da casa. A avó, Seis tias, o tio, o avô e o bisavô, mesmo de longe, acarinhando e enchendo o menino de amor. Tudo parecia estar bem. A menina estava caseira que só e a família feliz.


Quando todos começaram a sair de casa para as festas e baladas, missas, cultos, sambas e macumba, a menina também abriu sua carta de alforria e foi ao tonel do mundo beber felicidade, ela, viciada em vida queria bebê-la cada vez mais. Bailes na rua “40” lá no Boaçu, no complexo do Salgueiro, nos predinhos, onde houvesse predinhos (conjuntos habitacionais)...


O avô reclamava por não poder estar com os netos e com o bisneto, mas ninguém o deixava sair de casa e ele obedecia, aos oitenta e dois anos não seria fácil recuperar desse vírus maldito. Só via o bisneto por fotografia e dançava sozinho com as fotos, brincava de carrinho com o bisneto que para ele sorria num quadro pendurado acima da televisão.


Um dia a Yanne, esse é o nome da neta, apareceu sem avisar, com aquele sorriso que ele só faltava bater palminhas feito foca quando ganha uma sardinha, dizendo estar com saudades. Mário Corrêa quase enfarta de tanta emoção, conversaram muito, ele chorou horrores de emoção e a moça foi embora.


Não passou uma semana e um cortejo saía da Capela do Cemitério Central de São Gonçalo do Amarante com mais uma vítima da Covid. A família chorou as lágrimas do adeus mais triste que uma família pode ter. Essas lágrimas foram fruto do descaso, da falta de responsabilidade, da falta de amor ao próximo, da falta de amor à própria vida.


Quando aquele caixão desceu à sepultura, parte do coração e da história de cada membro daquela família foi enterrado junto. Nunca mais os dias seriam alegres, nunca mais um abraço inocente e sincero, nunca mais uma cara amarrada e pirracenta. Nunca mais Henrique.


A sabedoria de Mário Corrêa recebendo a neta mais amada da varanda de casa deixando-a do lado de fora do portão o salvaram, mas o pequeno Henrique, sem nem saber andar direito ainda e sem saber que a Covid era mais perigosa que as imagens que as sombras das cortinas da janela de seu quarto desenhavam a noite no teto, o fazendo gritar de medo querendo se abrigar no colo quente daquela que o havia parido não teve a mesma sorte.

Zé Elias, depois do enterro foi à casa do sogro para um abraço, um consolo, um afago no coração do “velho” que da varanda, com aquele jeitinho que só a idade nos faz ter disse carinhosamente:


_FICA EM CASA PORRAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!

 

Ajude a fortalecer nosso jornalismo independente contribuindo com a campanha 'Sou Daki e Apoio' de financiamento coletivo do Jornal Daki. Clique AQUI e contribua.

Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.





POLÍTICA

KOTIDIANO

CULTURA

TENDÊNCIAS
& DEBATES

telegram cor.png
bottom of page