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De Mãos Dadas - por Flavia Abreu


Reprodução Internet
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Já contamos um ano e meio de pandemia, uma tragédia para o mundo. Fomos acometidos por um vírus, que nos colocou dentro de casa, nos isolou das pessoas, do mundo e, sobretudo, de nós mesmos (falo aqui daqueles que, como eu, tiveram o privilégio de trabalhar home office, e de quem cumpriu corretamente o distanciamento social).

Se por um lado o isolamento nos protegeu da Covid-19, ele trouxe-nos algumas “avarias emocionais”, das quais não nos desprenderemos tão cedo. Ansiedade, depressão e estresse pós-traumático são as mais comuns, além de insônia, dificuldade de concentração e problemas de memória.

Nesta pandemia, todos os dias são iguais. A rotina é a mesma, de domingo a domingo. Não há mais o jantar romântico de sábado, naquele restaurante preferido do casal. Não há possibilidade de visitar ou receber a família para um almoço de domingo. Shows, teatro, cinema, igrejas, praia, um gostoso bate-papo no bar, com os amigos, festas, tudo equivale a uma possibilidade de transmissão do maldito vírus. Não há atividades de interação entre as pessoas, e, o nosso modo de agir nesta mutualidade é o que nos torna quem somos.

Estamos dentro de casa, olhando para as paredes. No início parecia uma oportunidade única de reflexão, de autoconhecimento. E foi. Observamos nossas casas e tudo o que, dentro dela, não víamos por falta de tempo. Muita gente fez reformas, pintura, obra de manutenção ou trocou móveis. Cuidamos de nossas plantas, adubamos, podamos, replantamos, tiramos mudas. Nossos filhos e animais de estimação ganharam mais atenção e um carinho especial. Na cozinha, todos viramos chefs, com a quantidade de receitas que inventamos ou testamos. Os programas de culinária nunca tiveram tanta audiência.

Lemos bastante, ouvimos nossos discos favoritos, colocamos em dia aquela lista de filmes que nunca tínhamos tempo de assistir. Olhamos com cuidado para a nossa saúde e para o nosso corpo físico. Descobrimos muita coisa quando nos aprofundamos em nós mesmos. No âmbito da casa, graduamo-nos. Oportunidade não faltou para reconhecer as nossas virtudes e repreender as nossas imperfeições. E agora, quem somos nós no mundo lá fora? No âmbito da rua, onde e como nos inserimos?

Somos, por natureza, seres gregários. Nossas relações interpessoais nos diferenciam, em parte, dos animais. Muita gente tem revelado, por exemplo, não saber que roupa usar para voltar a trabalhar, afinal, passamos um ano e meio de pijamas, o que tem nos causado certa ansiedade. Aqueles que já começaram a sair de casa demonstram dificuldade em retomar amizades, e até mesmo em olhar nos olhos das outras pessoas. Aquela roda de samba cujo suingue outrora me era tão familiar, hoje me causa estranheza, como se fosse a minha primeira vez naquele lugar. O costumeiro cheiro de pipoca no cinema converte-se agora em uma novidade sensorial.

A distância daquilo que nos é familiar e que nos causa tanta alegria e tanto prazer pode ser extremamente danoso emocionalmente. Afastar-se das pessoas e dos lugares costumeiros durante um longo período torna-se muito perigoso, porque pode nos desviar de nós mesmos, daquilo que, de fato, temos de mais verdadeiro, “qual era mesmo aquele prato que eu sempre comia aqui?”, “o que eu costumava conversar com esta amiga, que não vejo há tanto tempo?”, “onde ficava aquela mesa em que me sentava neste bar?”, “o que fazer agora, no trabalho? tudo está tão cheio de poeira! cadê o cafezinho? por onde recomeçar?”.

Todos os cuidados, extremamente necessários, diga-se de passagem, durante a pandemia, salvaram nossas vidas. Entretanto, de certa forma, contribuíram para um afastamento de nosso “self original” (senso verdadeiro de si mesmo) e deram lugar, no retorno presencial às nossas atividades, a um falso “self”, uma “casca”, um comportamento defensivo, em muitas ocasiões, de nossa vida, agora, no âmbito da rua. Um perigo: o de perder-se, e não conseguir retornar a si. Urge descobrirmos como sustentar o nosso self original, alimentando e protegendo quem nós realmente somos, a nossa essência, expressa através de nossas escolhas, e sobretudo, nas nossas relações humanas. É importante, aos poucos, retomar os contatos, refazer os caminhos, na medida do possível, honrando nosso self, com paciência, empatia e cuidado. Rever pessoas, conversar, olhar nos olhos, lembrando-se de que todos nós passamos por esta tragédia, que ceivou tantas vidas humanas.


Voltar ao trabalho presencial, sair com os amigos, visitar a família, assistir ao show do nosso artista favorito, jantar com a pessoa amada naquele lugar que traz tanta memória, o importante agora é refazer, reconstruir, ressocializar-se e juntos encarar os novos desafios. Como escreveu Drummond, “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

Flavia Abreu é professora e blogueira.





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