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Há algo de errado com nossos melhores, por Sammis Reachers


O médico cubano Juan Delgado sendo hostilizado pelos "nossos melhores" em Fortaleza ao chegar no país para atender no programa "Mais Médicos" em 2013/Foto: Reprodução Internet
O médico cubano Juan Delgado sendo hostilizado pelos "nossos melhores" em Fortaleza ao chegar no país para atender no programa "Mais Médicos" em 2013/Foto: Reprodução Internet

Sua profissão deve ser a mais bonita, ou talvez menos que a do bombeiro, no épico instante quando este retira dum carro ou lar em chamas, um infante prestes a ser devorado. Mas o bombeiro é um braçal; aqui há algo a mais, uma inquestionável ou nunca questionada elevação.


Desde sempre, o exercício de sua profissão é o exercício igualmente de um status – um halo de luz que parece ou ao menos se julga acompanhar seus oficiantes.


É o vestibular mais difícil, a nota de corte mais alta do ENEM, o curso mais desejado: Os que contam com paitrocínio ou avôtrocínio cursam particular, investimento da família, mensalidade potente para alimentar meia tropa; outros se abalam para a Bolívia, onde o custo de vida é sempre menor, bem como as mensalidades.


Um país não pode viver sem eles, e a grande maioria cumpre sua nobre função – função, por sinal, das poucas que não foram desvalorizadas pelo tempo, como aconteceu com os advogados, esses prontos-para-tudo que a civilização acolhe com cada vez maior desconfiança; ou os engenheiros (“ele é engenheiro formado, melhor do que você”), cujo excesso é absorvido pela UBER, maior empregadora de engenheiros civis do país, superando Petrobrás, aquela que já foi nossa e Vale, aquela que já foi do Rio Doce.


É péssima faina o falar aquilo a que ninguém se habilita, apalpar o fundilho da cumbuca, abraçar o espinheiro para sacudir e ver se cai um pomo. Mas é preciso: há algo de errado com nossos médicos. Há algo de errado com aqueles que a teoria celebrou como os melhores de nós.

O alarme já foi dado há algum tempo; seu som irritante vez por outra pipoca aqui e ali, mas é preciso querer ouvir.


O toque de clarim foi o Programa Mais Médicos do Governo Federal que, após concretizar a temeridade – promessa de campanha para seu curral eleitoral – de demitir os médicos cubanos, tentou conseguir médicos brasileiros (nada mais justo, o Brasil para os brasileiros!, diria Castelo Branco ou Golbery) para suprir as muitas vagas geradas. Salário legal, nem era preciso experiência e... Puff! Centenas de lacunas – nos “piores” lugares, mas nem só neles – ficaram em aberto; noutras, aqueles que inicialmente se dispuseram, ou não deram as caras – cara não que quem tem cara é cavalo, não bacana – ou, apresentando-se, abandonaram o posto em pouco tempo (usaria o termo deserdaram, mas isso é pra soldado, não pra bacana). Alguns, sentindo os ares da terra, nem se deram ao desfrute de desfazer as malas, e picaram a mula ou a Cherokee com força.


Esta semana, mais uma campainha tocou, um alarido ressoou uma vez mais na nação: Os peritos do INSS, aqueles responsáveis muitas vezes por uma pessoa e sua família MORREM DE FOME ou NÃO, se recusaram a trabalhar. Mesmo após tudo combinado, milhares de pessoas agendadas... Algumas delas, você podia ver nas filas, confortavelmente postas em cadeiras – cadeiras de roda... Os médicos-peritos acham que está tudo ainda muito perigoso, que não há equipamentos adequados.


Grande parte desses mesmos médicos que acreditam que tudo está ainda perigoso – e está! – atendem normalmente em consultórios particulares, de segunda a segunda, indo de clínica em clínica, fervidos de um te$ão quase adolescente. Alguns são mesmo donos de clínicas, onde jamais negaram expediente; os mais feridos de espírito empreendedor, talvez sejam sócio-proprietários até de hospitais.


Entendemos que a segurança deve ser mantida, somos favoráveis ao isolamento – mas há aquelas funções capitais, aquela coisa que lida com assuntos de VIDA OU MORTE, e a merreca do INSS é um desses “assuntos” para quem depende. Assim, não há como se escusar.


Mas o país é grande demais, e já nos bastam os problemas de nossa municipalidade. Vamos dar um rolê?


Circulando pelas clínicas populares de Alcântara, por exemplo, podemos traçar um triste panorama. Minha pouca experiência, bem como de alguns parentes, é de lidar com médicos aparentemente cansados, cansadérrimos até (mesmo às 8h da matina), pelo nível de mau humor manifesto. MAU HUMOR: Duas palavras matadoras em seu poder de definir uma pequena maioria de esculápios, da jovem e bonita iniciante que vem da Tijuca até o aposentado que mora num condomínio em Camboinhas e continua a medicar não por amor à profissão, mas para sustentar netos como quem ceva príncipes. O destrato, gratuito, é algo que por vezes faz você se sentir num balcão de bar, sendo espezinhado por algum valentão ou chaparral. Mas não há valente ou chaparral algum – há um que a sociedade e a família dele e o espelho dele e a conta bancária dele celebram como “o melhor de nós”. Por que tanto descaso com o ganha-pão, o maldito instrumento de trabalho, VIDAS HUMANAS?

O baile segue: Este chega na hora que lhe apraz; aqueloutro abandona a clínica sem sequer avisar aos que estão há cinco horas esperando a vez, e ali permanecerão ainda por um bom tempo.


Quê? Você quer falar do SUS?!! Já posso imaginar você entrando naquela UPA. Colubandê, né? Ou Marambaia? O destrato começa na triagem, no enfermeiro. Parece uma linha de produção, e a você resta o papel de caixa de batatas. Aí vem o melhor de nós e, sem nem olhar para a sua cara – pois você, abençoado, VOCÊ tem cara, afinal não é um bacana – vaticina: “É virose, tasque benzetacil e chame o próximo, por favor”.


E a clínica de família do seu bairro? Consulta marcada para o próximo mês, exames para daí a dois meses com mais um de espera pelo resultado? Hein, te encaminharam para o PAM de Alcântara e, após os trâmites, mandaram você aguardar em casa a “ligação telefônica” deles? Mas os meses estão se passando, e nada de ligação? É provável que nunca liguem. Por que motivo você imagina que o sistema não é informatizado e transparente? Ai do mortal que não conhecer alguém – político pilantra ou pilantra político – que faça sua posição na fila “andar”...


Mas voltemos aos médicos. Não estou generalizando em minha crítica, de maneira alguma. Há heróis na corporação; ela – a Medicina – é mesmo uma corporação de heróis, de indivíduos dispostos a dar o próprio sangue pelo bem das vidas a que juraram proteger. E há muitos, mesmo trabalhando em péssimas condições, lotados da mais humana simpatia por aí. Mas isso já sabemos e há mais de um milênio celebramos e remuneramos; esse artigo aqui, desagradável, confesso, foi para falar sobre os outros, os que desonram a farda, os detestáveis. E cujo número aumenta exponencialmente, para desgraça pátria.


Pois o alarme, a buzina, a vuvuzela que seja, tem tocado em cada rincão de Pindorama, som incansável como o de uma onipresente e endiabrada cigarra. Eu só fiz foi ouvir o seu esporro.

 

Alguns livros (gratuitos) que escrevi ou organizei podem ser baixados AQUI. Um pouco de poesia experimental? Eu experimento AQUI.

Sammis Reachers, nascido por acaso em Niterói mas gonçalense desde sempre, é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos, e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.






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