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"I'm not dog no” e o cemitério canino de Marambaia, por Erick Bernardes


Cemitério de cães de Marambaia/Foto: Erick Bernardes
Cemitério de cães de Marambaia/Foto: Erick Bernardes

Seria interessante começar esta história com a canção de fazer lembrar dores de cotovelos de inúmeros brasileiros. Mas o caso é do Jorge, homem sentimental levado a agravar o alcoolismo, justo depois de haver terminado o noivado com a amada. Por esse motivo, foi viver para os lados de Marambaia. Imagine, tomou um passa-fora da moça a quem amou tanto e entristeceu. Ela já se encontrava de saco cheio do relacionamento com o beberrão. Mas ele, tadinho, nem me fale, chorou horas e horas, tamanha a decepção. Subiu no ônibus e, pasme, qual não foi a coincidência, quando se ouviu a canção, cujos versos emitidos pelo alto-falante do veículo trouxeram ao desventurado mais tristeza ao espírito! Pois é, tratava-se da música de Waldick Soriano na voz do cantor Falcão — e em inglês. Deus do céu, prosódia muitíssimo caricata. Quase uma tragédia, o "I’m not dog no" do refrão transformou a vida de um homem.


Até hoje se evidencia em meu íntimo certa confusão territorial: Marambaia pertence a São Gonçalo ou a Itaboraí? Aos que conhecem a geografia, está claro se tratar de um bairro bimunicipal. Exato, uma perna no município de lá e outra cá. Contudo, no imaginário do morador como fica a referida localização? Bem, já dizia Nivea Sandden, quem faz o lugar é o povo, não as demarcações. O certo é que eu conheci esse que é um dos sujeitos mais estranhos do mundo, verdade, chamava-se Jorge “Desalmado”. Uma espécie de trocadilho das pessoas com referência ao escritor baiano de sobrenome Amado. No caso do Jorge gonçalense e Desalmado, este se deparou com a noiva em altos beijos no forró do Bar do Ferreirinha no centro de São Gonçalo e entrou em depressão. O coitado viu com os mesmos olhos que a terra lhe comeria depois. Verdade, enquanto se esforçava para desacreditar, ficou parado. A loira rodopiou ao sabor a música e grudou um beijo selvagem na boca do rapazola de camisa de seda, gravata e calça social amarrotada. Tristeza. Traído. Começou a chuviscar. Solidão sentida na hora. Um noivo decepcionado. No entanto, o futuro casamento se desfez em menos de meia hora de discussão. Na manhã seguinte, Jorge era só um fantasma em busca do sentido pra vida, dentro do ônibus, a caminho de Itaboraí. Um resto de gente, sucata humana perambulante. E foi nesse exato momento quando conseguiu traduzir a frase estrangeira da canção debochada na voz de Falcão. "I'm not dog no". Pois é, por que nosso personagem deveria viver tão humilhado, dando satisfação aos parentes e amigos acerca do fim do noivado? Não era cachorro para ser tratado assim, definitivamente não era. Ansiou pela solidão. Resumo da ópera, quer dizer, da tragédia: o tal Jorge Desalmado desceu do coletivo ainda em movimento e se sujou no barro. Tombo leve, embora estivesse bêbado, manteve o equilíbrio das pernas até certa medida – e entrou no primeiro recanto onde lhe pareceu deserto. Sabe em que consistia aquele reduto recém-descoberto? Tratava-se do famoso Cemitério dos Cães de Marambaia. Exatamente, incrível, negando ser algum tipo de "cão pra viver humilhado" (conforme a música), o infeliz dormiu na necrópole dos pets caninos. Coincidência assim nunca vi. Principalmente, porque a partir desse momento, Jorge Desalmado se tornou o primeiro cuidador de túmulos de cachorros de que ouvi falar. Inusitado, exótico, no mínimo curioso. Anos e anos prestando serviço no cemitério para quem desejasse ver o túmulo limpo e cheiroso de qualquer cãozinho ali sepultado.


Mas, seu Jorge, isso dava dinheiro, conseguiu sobreviver assim?


Pagava minha cachaça e cigarros. Comida, os vizinhos me ofereciam. Ao menos me mantinha isolado, na medida do possível. Gosto mais de animais mortos que de gente viva. Agora estou aqui, sem saúde e sem ter para onde ir. Sinto que me restam dois ou três dias de vida no máximo. Você me faz o favor, meu jovem, arranjaria um jeito de me enterrarem junto aos túmulos dos cães? (Implorou o coitado)


Bem, caro leitor, aquele senhor estava nas últimas, e eu era um simples estagiário na clínica. Precisava aquietar o espírito do miserável e menti.


— Claro, seu Jorge, tem preferência de ala ou cor de lápide?


Não respondeu, o coveiro de bichos dormiu e nunca mais voltou. Disseram que uns primos e sobrinhos distantes deram um jeito de completar o funeral de um jeito normal. Mas e a promessa? Não sei, reconheço certo temor, pois toda vez que ouço os versos de “eu não sou cachorro não”, a voz do Jorge Desalmado ecoa na minha mente.


Nota do autor: essa história me foi narrada no tempo em que fui estagiário de enfermagem em uma clínica de Niterói. Sobre o referido cemitério dos cães, ele existe mesmo e de fato se localiza em Marambaia. Dizem até que a história da necrópole canina e a vida da proprietária foram representadas no premiado filme estrelado no cinema por Mariana Ximenes. Há também um vídeo, pois eu mesmo estive na referida necrópole. Se quiser saber mais, confira os links abaixo:


Vídeo:


Jornais:


Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.



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