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Luiz Caçador, uma outra versão. Por Erick Bernardes


Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Certa vez o escritor Marchel Schowob* afirmou que "é o detalhe esdrúxulo em si que engrandece o indivíduo". Isso quer dizer haver em cada pessoa, cada personagem, o detalhe interessante tornando um tipo de suprassumo dos narradores.


Por que lanço mão dessa comparação incomum? Simples, o meu ensejo se serve da singularidade da narrativa que me chegou na caixa de e-mail na semana passada acerca do nosso já explorado Luiz Caçador. Aquele mesmo responsável por nomear o bairro homônimo. Reparei no detalhe, primeiríssimo detalhe, o emissor deveria ter no mínimo seus 40 anos. Afinal, era um e-mail em formato Word. Se fosse alguém mais jovem, decerto estaria antenado com a digitalidade e enviaria uma mensagem de Whatsapp. Sim, o detalhe, o ato destoante é aquele mais significativo.


A história ocorreu após, certa vez, eu e meu amigo Zé Salvador ministrarmos um oficina de cordel com duração de 5 semanas no Ciep Vital Brazil, no bairro Luiz Caçador. Escola acolhedora, alunos sobremaneira interessados, e lá fomos a convite da professora. Bem, no meio da provocação da criatividade, bem depois da explicação métrica do Zé, li em alto e bom tom a história do caçador de jacarés outrora famoso e, por isso, mesmo talvez tivesse deixado ao entorno o topônimo curioso como algum tipo de herança. Era caçador o tal senhor Luiz.


Bem, melhor resumir a nossa ação: cinco semanas de oficina de cordel, folhetos coletivos escritos pelos alunos com o selo oficial da ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel), orgulho dos educadores e discentes, realização pessoal. Cumprimos, sim, conseguimos, e não é que ao ir embora avistamos um rio onde emergia uma cabeça de animal! Pois é, nem tudo é lenda em São Gonçalo. Mas voltemos à carta via e-mail e a singularidade da emissão chegada quatro semanas após eu e Zé ministrarmos a tal oficina:


Prezado professor Erick Bernardes,


Primeiramente parabéns a vocês pelo lindo trabalho no colégio do nosso bairro. Minha filha se sente orgulhosa de ser uma das autoras do cordel elaborado na oficina. De acordo com ela, vocês narraram a história do Luiz Caçador no intuito de fomentar a criatividade das crianças e promover o enredo necessário a essa linda arte do cordel. Contudo, permita-me uma ressalva, há outra história a vagar pelo lugar e que, certamente, agradaria aos leitores. É mais ou menos assim:


Há muito tempo, Luiz era dono de uma linda fazenda. Havia pomares, gado, hortaliças e um lago enorme repleto de peixes. Desse lago extraíam o sustento da família. Monetizavam a produção. A esposa de Luiz lavava roupa na borda do lago, a propriedade pertencia unicamente a Luiz e família. A caça da capivara complementava a dieta proteica de todos ali. Uma delícia iguaria, por sinal, ensopado de capivara. Daí a verdadeira história do apelido do cidadão, Luiz Caçador, nada de jacarés ou coisas do tipo. Só capivaras.

Luiz ficou muito conhecido no Leste Fluminense. Dizem que era feiticeiro, bastava procurá-lo e o desejo do cidadão se realizaria depois de uns "trabalhinhos" executados. Eram pessoas chiques que procuravam as mandingas do personagem famoso. Juro, meu bisavô também ia lá, cansei de ouvir isso da minha mãe. Ele vendia cocadas ao Luiz para os rituais espirituais e depois ficava com medo de cobrar o dinheiro da venda do doces de coco. Claro, né, e se o feiticeiro lançasse magia ruim?

Mas um dia Luiz adoeceu das pernas e dos braços. Pois é, desgraça pouca é bobagem. Perdeu as pernas e o braço direito. Que infeliz! Resultado: os filhos não nutriam o mesmo amor pela fazenda - e lógico que os rebentos lotearam e venderam a propriedade. Luiz faleceu, claro, tanta tristeza o consumiu por dentro. Morreu. Mas onde estaria o dinheiro da venda dos lotes? A grana sumiu por um tempo. Até que se descobriu o dinheiro dentro do colchão velho do feiticeiro. As notas e moedas já não possuíam valor algum.

O restante da propriedade coube aos filhos vender a certa empresa de nome Apex. Desperdiçaram o dinheiro com mulheres e bebidas importadas. Quer saber como tenho certeza disso? Sou bisneta do Luiz Caçador. Se meu antepassado e meus avôs tivessem respeito aos seus descendentes, certamente estaríamos bem de vida. Papai se chama Guilherme, tem uma oficina no que restou do lugar, exatamente onde ficava a tal cama-cofre do caçador de capivaras. O loteamento onde era a fazenda, primeiramente, recebera o registro de Jardim Progresso, mas ganhou fama pelo apelido de "terras do Luiz Caçador". Daí pra frente o senhor já sabe, são só detalhes.


Que interessante, carta enorme e rica em detalhes. O engrandecimento do Luiz Caçador se deu pelas tristes amputações de braço e pernas e desvalorização monetária por causa de capitalização esdrúxula. Os detalhes, sempre os detalhes das micronarrativas que nem são tão micro assim. Paradoxal, isso sim.



* Mayer André Marcel Schwob, mais conhecido como Marcel Schwob, foi escritor da corrente simbolista francesa, ficou conhecido por seus contos e por influenciar autores como Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño. Schwob foi apelidado de "precursor do surrealismo".

Erick Bernardes é escritor, professor mestre em Estudos Literários.




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