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Marambaia e os "pós" do efeito borboleta, por Erick Bernardes


Imagem Pixabay
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A versão romantizada do que se convencionou chamar de efeito borboleta propõe que o bater das asas do colorido lepidóptero alteraria uma cadeia cumulativa de acontecimentos, a partir das quais surgiriam consequências outras que mudariam o curso das coisas.


Por que estou falando disso? Bem, é porque o caso da crônica de hoje se assemelha à teoria do efeito borboleta, pois trata das pequenas alterações cotidianas, as quais influenciam sobremaneira a geofísica dos fatos. Certo é que, depois de termos publicado a história sobre a origem da localidade gonçalense chamada Pantanal, território pertencente à localidade de Marambaia, a recepção da crônica desencadeou outras narrativas melhores e mais contundentes. Correto. É como se fosse algum efeito em cascata oferecendo memórias. Inúmeras histórias chegando aos meus ouvidos justamente por causa do nosso modesto texto, evidenciando ao público a existência da região denominada Pantanal gonçalense. E o caso se deu assim:


— Rapaz, essa sua história sobre Pantanal me fez lembrar minha juventude. Recordo que explorei bastante aquela região de Marambaia à época de 1993. Verdade, eu e o meu amigo Bani, morador de lá mesmo, filho dos fundadores hippies da comunidade. Época boa, fazíamos artesanato com ossada de boi.


Bom, caro leitor, necessário abrir nossos parênteses no relato do camarada. A ideia aqui é oferecer à narrativa algum momento de intertextualidade. Quer dizer, lembremos do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, cujo menino sertanejo dava vazão às brincadeiras, por meio de vértebras descarnadas e provenientes de animais mortos pela seca. Todavia, no caso de Marambaia, a geografia se constituía outra, seca por ali nem pensar — somente se viam charcos e alagadiços. Ambiente úmido, chão encharcado até por demais. Quase zero de asfalto e saneamento básico precário. Lamaçal resultante do descaso do poder público.


— Era do Pantanal que retirávamos nossa matéria prima. Dois manés metidos a escultores da natureza morta (risos). Usávamos madeira retorcida extraída da paliçada natural. Talvez por isso os índios tenham batizado com o nome Tupi: Marambaia = paliçada (marã) de guerra (m’baia). Quem sabe não houve algum dia alguma amurada de batalha por lá? Só sei que catávamos material. Além disso, pelo outro lado da RJ 104, íamos procurar pedras semipreciosas no chão também, pois serviriam à confecção de artesanato. Havia uma fábrica de joias e ornamentos que utilizava essas pedras. Constituíam-se de rejeitos, lembro bem, os materiais sem relevância eles usavam para tapar buracos e acertar a rua de barro. Era desses rejeitos que pegávamos também nossa matéria-prima. Asfaltar a rua nem pensar, nem antes, tampouco depois.


— Mas era em São Gonçalo isso?


— Sim, Marambaia, quase chegando em Apolo III. Sabe que o bairro é bimunicipal, né? Meio cá e meio em Itaboraí. Isso aí, dois municípios, apenas um bairro.


Viu aí, caro leitor? Incrível como o cotidiano faz questão de revelar a minha ignorância. Cada explicação do passado evidencia o tamanho estimativo do meu desconhecimento. Nosso amigo nos confidenciou ter sido o bairro de Marambaia realmente "colonizado" por hippies na década de 70. Sim, eles (os hippies) criaram a comunidade perto de uma igreja famosa. Segundo o relato, talvez ainda exista essa tal construção eclesiástica do tipo mais popular.


— A minha primeira mulher conheci no bairro da Trindade, num show de hardcore. Conheci também certa cantora gente boa que foi vocalista da banda da região do Sana, em Friburgo,chamada Raiz do Sana, já ouviu falar? Essa moça de bela voz era de Marambaia e a conheci no Cebric, escola no ponto Cem Reis, onde noutros tempos estudei. Foi através dela que conheci a galera toda. Saudades da minha juventude!


Ficou visto que no bairro havia a tal comunidade de cultura e arte dedicada a atrair os jovens e a mantê-los afastados do uso de drogas. Ótimos ideais já naquele tempo. Nessa comunidade, os artistas davam seu suor, intelectuais de diversas áreas mergulhavam suas horas de trabalho na filantropia. Até religiosos participavam! Coisa grande, nesse nível altruísta, um típico alimento para o espírito. Amor ao próximo, corrente do bem.


O que temos hoje de ajuda aos dependentes em Marambaia, cadê a corrente de responsabilidade pública do governo? Preciso responder? Quem dera se o Efeito Borboleta funcionasse para o bem político também. Mas a vida é assim mesmo. O que era bom de fato para a comunidade bateu asas e voou. Nem os hippies aguentaram mais, nem eles.


*Nota do autor: o conceito nomeado de Efeito Borboleta foi criado por Edward Lorenz na esfera dos estudos de previsibilidade atmosférica. Esse cientista se referia ao bater das asas de gaivota em seu artigo acadêmico. De maneira alguma mencionou borboletas como se costuma apregoar. O nome Efeito Borboleta surgiu de uma adaptação de Dr. Phil Meriless, a partir da palestra que Lorenz ministrou posterior à publicação da sua pesquisa, lá pelos idos de 1969. Mas a precariedade das terras de Marambaia continua a existir de verdade.

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.





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