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O amor e o respeito, por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Leontina casou-se muito nova, aos 15 anos, com Firmino com quem teve três filhos. Já fizera bodas de ouro ao descobrir que o marido a traía a pelo menos outros dez anos com a vizinha da rua de cima. O sangue quente nordestino fez com que ela não conseguisse controlar a fúria e aplicar uma grande surra na rival que ficou sem os dentes da frente e para sempre com problemas de visão. Quanto a Firmino não pôde entrar em casa nem para pegar suas roupas que foram jogadas na rua junto com seus documentos e todas as lembranças de um casamento feliz até aquele dia. Leontina nunca mais dirigiu o olhar e nem palavra a Firmino que, apesar de ficar com os joelhos em carne viva de tanto pedir clemência à mulher, foi obrigado a pedir asilo a sua amante com quem passou a viver maritalmente.


A sergipana Leontina jamais pensou em se casar de novo e vivia para os filhos. Ocorre que um antigo amor que ela nunca correspondeu, um trabalhador na estiva do cais do porto que todos os dias passava por seu portão a olhando do jeito que a morte olha pra vida, matreira como a chegada das noites de inverno e explosiva em brilho e calor nas manhãs de verão, foi chegando sorrateiro, no inicio repelido educadamente e devido a insistência, mais tarde espanado com a sinceridade e altivez peculiar dos nordestinos. Amâncio era seu nome. Poeta, mineiro, sem instrução, mas com inspiração divina, nunca se deu por vencido e no meio de um lotado supermercado numa tarde de sábado, empunhando um buquê de flores e um sorriso de iluminar o mundo, ajoelhou-se na frente de Leontina que ladeada dos três filhos ouviu ruborizada e emocionada a declaração de amor que todo mundo sonha ouvir:


"Te vim trazer um recado do tempo.

Ele passará tão rápido que não vai dar tempo

de você ter tempo de dizer não.

Destranque a porta do peito

e receba como esposo este sujeito

que de coração apertado,

esperançoso e aperreado

entrega a vida em tua mão."

Apesar de ter sido deixado ajoelhado no meio do supermercado com um buquê de flores nas mãos e um coração despedaçado, os filhos de Leontina o acolheram e ajudaram a juntar o casal que viveu junto por mais de 25 anos. Amâncio tratava os filhos dela como se dele fosse, de tudo fazia por aqueles rapazes para desespero de Firmino que calado sofria por não ter sido perdoado pela traição e ver seus filhos, que apesar de tê-lo na mais alta conta, tinham um enorme carinho pelo padrasto. Quando os netos foram chegando chamavam também Amâncio de vovô. Leontina saiu deste mundo deixando filhos e netos inconsoláveis com sua partida. No dia de seu enterro, Amâncio e Firmino ficaram horas à beira do túmulo de Leontina sem dizer palavra. Até que Firmino rompeu o silêncio:


_ Por que nós dois, amando a mesma mulher durante todos estes anos nunca tivemos um entrevero?

Amâncio tocou no ombro de Firmino e respondeu:

_ Porque houve entre nós um sentimento que anda em falta no mundo: Respeito. Eu respeitei a união de vocês enquanto casados estavam e você respeitou minha união com ela enquanto comigo casada esteve. Se houvesse respeito no mundo as guerras acabariam, as famílias se multiplicariam, os amores seriam eternos, as amizades se tornariam irmandades e o mundo seria mais feliz.


Os dois saíram do cemitério abraçados. Todos os anos, no dia do aniversário de Leontina, duas rosas vermelhas enfeitavam seu túmulo. No bar em frente ao cemitério dois homens bebiam uma cerveja juntos sem dizer palavra e ao final saíam para lados opostos.

Paulinho Freitas é cantor, compositor e sambista.




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