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O atendimento contra o coronavírus no Hospital das Freiras começa com uma mentira, por Mário Lima Jr


O hospital/Foto: Divulgação
O hospital/Foto: Divulgação

Referência no combate ao coronavírus em São Gonçalo, acolhendo inclusive pacientes vindos de cidades vizinhas, o atendimento no Hospital Franciscano Nossa Senhora das Graças, em Lagoinha, mais conhecido como Hospital das Freiras, começa com uma mentira dita na portaria do hospital aos doentes que passam por ela.


– Aqui só fazemos o teste rápido, no dedo, é o procedimento – me recebeu o rapaz trabalhando na portaria, sem uniforme e sem identificação visível, sentado atrás de um muro baixo.


O “procedimento” no Hospital das Freiras é tão repetido nas dependências dele e se tornou tão popular que vizinhos e amigos já haviam me alertado. Respondi ao rapaz que sabia da limitação, mas precisava, o quanto antes, que algum teste fosse aplicado no meu pai, que tinha febre há uma semana. Fomos autorizados a entrar depois do nosso consentimento em receber o atendimento inferior, visto que o teste mais indicado para quem começou a sofrer com os sintomas é o RT-PCR, considerado “padrão ouro” pelas autoridades de saúde.


Era a primeira semana desse mês e havia menos de dez pessoas na fila dentro do hospital, número razoável para a realidade da saúde pública brasileira. Vinte minutos depois de chegarmos, meu pai passou pela triagem, onde foi entrevistado pela enfermeira e explicou os sintomas que sentia. Novamente o “procedimento” foi citado. A orientação era entregar a documentação na recepção para fazer o exame sorológico, embora meu pai tenha mostrado o pedido médico de outra unidade de saúde para a realização do RT-PCR, feito por meio de um cotonete introduzido nas narinas.


Sentada na frente de um balde que amparava as goteiras do teto, a recepcionista do Hospital das Freiras pegou a documentação e mandou meu pai aguardar pela segunda vez. Uma amostra de sangue foi extraída do dedo dele e uma terceira espera começou, dessa vez para pegar o resultado do exame.


Febril, fraco e cansado, o resultado deu negativo e um enfermeiro dispensou meu pai, de 67 anos, para voltar pra casa. A sensação de apresentar sintomas parecidos com os da Covid-19 e ter em mãos um resultado negativo era de estranheza e felicidade ao mesmo tempo. Desanimado, mas movido por uma alegria que descobrimos depois ter sido equivocada, ele agradeceu a toda equipe médica. Por último, retornou espontaneamente à triagem para agradecer à primeira enfermeira pelo atendimento. Com um idoso visivelmente debilitado na frente dela, a enfermeira deve ter sido tomada por um senso de profissionalismo, ou pena, e sussurrou, para que outros pacientes na recepção não ouvissem.


– É muito difícil eles fazerem isso aqui, é preciso insistir bastante, mas nós também realizamos o PCR. Vou tentar para o senhor. Espere um pouco, por favor.


Quando a recepção ficou vazia por alguns instantes, a enfermeira nos levou para outra sala de espera. Meia hora depois, meu pai fazia o exame que, de acordo com a equipe do Hospital das Freiras, não está disponível ali e não faz parte do “procedimento”.


O procedimento é enganar a população. Pacientes que conhecem alguém da equipe do hospital recebem tratamento diferenciado e fazem, em segredo, o RT-PCR. Idosos gentis em estado grave contam, às vezes, com a mesma sorte. Outros pacientes em estado semelhante ao do meu pai voltaram para casa naquele dia sem a chance de um diagnóstico mais preciso. Alguns recuperavam o fôlego embaixo da sombra das árvores do Hospital das Freiras antes de irem embora cabisbaixos.


O resultado do segundo exame levou quatro dias e deu positivo. Se meu pai não voltasse à triagem para se despedir, não teria feito o exame. Saúde é direito previsto na Constituição, não pode ser objeto de caridade. Além disso, diagnosticar a doença é fundamental para evitar a disseminação e iniciar o tratamento adequado.

Mário Lima Jr. é escritor.




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