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O cavalo que guardava dinheiro - por Erick Bernardes


Poderia parodiar o cordel de Leandro Gomes de Barros ao começar assim:


Na cidade de São Gonçalo

Antigamente existia

Um polonês comerciante

Que nada o satisfazia

Desejava possuir

Todo dinheiro que via (...)


Mas não, melhor nem ousar, pois decerto eu correria o risco de quebrar a métrica e resvalar no preconceito. Longe disso, só a narrativa me convém. Então, vamos de prosa:


Quando viu pela primeira vez os jacás encostados às costelas do cavalo, o menino de sete anos estranhou. Sim, claro que estranhou, embora Vila Oriente constituísse um morro não tão habitado, não eram frequentes as andanças de mascates pelas bandas de lá, e isso chamou atenção do menino Josué, de quem falaremos adiante.


O morro da Vila Oriente é uma comunidade encravada entre os bairros Gradim, Porto da Madama e Porto Velho, na direção da Ilha do Tavares/ Ilha do pontal, pertinho da Rodovia BR 101. Ainda é possível encontrar comércios com o nome do lugar. Na época em que esta narrativa se passa, inúmeros residentes viviam da atividade pesqueira ou trabalhavam nas indústrias do município.



Para quem não conhece a história de SG, é bom também ressaltar ter havido imigração massiva de judeus por aqui. No entanto, a maioria desses imigrantes vinha de Portugal e Espanha, eu disse a maioria, porque em menor proporção vieram da Alemanha, Estônia, Itália, Romênia e, por incrível que pareça, também judeus vindos da Polônia, conforme o caso do tal personagem mercador a conduzir o cavalo carregado de mercadoria em seus cestos de vime e chamando atenção dos moradores, no mais eficaz modo de propaganda: as palmas. Sim, batia palmas, chocava as mãos até arderem as extremidades dos dedos e conseguir que o morador o atendesse.


_ Pac pac (palmas), ôh, de casa, dona Areni.


Bem, perdoe a escrita estranha. É só a minha tentativa de imitar o sotaque do tal comerciante judeu polonês. Embora falasse alemão, ídiche, hebraico e polonês, é claro, era impossível a ele pronunciar Irene corretamente, por causa da dificuldade com o idioma português. Sim, o alvo das palmas era a dona de casa que comprava os produtos do mascate polaco, mãe do menino Josué, aquele que décadas depois decidiu nos narrar esta história. Mas o nosso personagem europeu de olhos azuis, cabelos loiros como ouro, no auge dos seus trinta e nove anos, de jeito nenhum conseguia pronunciar o "I" inicial da dona Irene.


_ Don'Arene, senhora tá em casa?


Pelo parapeito da janela da residência o menino assistia à mãe questionar o comerciante acerca da cobrança no fim de semana.


_ Mas, senhor, você não é judeu? Até onde sei a cultura judaica não permite comercializar hoje, pois é sábado.


_ Não estou vendendo hoje, não, senhora. Nada de comércio no sétimo dia. Só vim fazer companhia ao meu cavalo, ele não é judeu. Até onde sei ele é pagão, só pensa em pagamentos (risos). Coloca o dinheiro da sua compra de linhas e agulhas do mês passado ali na sacolinha presa no pescoço dele.


_ Mas deixe de ser besta, hoje é dia de descanso. Vou pagar ao seu cavalo, mas tô chateada. Ainda são sete e meia da manhã, vixi, passa só em dia e horário comercial daqui pra frente, hein!


E assim aconteceu certa vez em SG, no Morro da Vila Oriente, quando o vendedor polonês saiu cantando:


Cada um faça por si,

Eu também farei por mim!

É este um dos motivos

Que o mundo está ruim,

Porque estamos cercados

Das pessoas que pensam assim.


Referência:


BARROS, Leandro Gomes de. O cavalo que defecava dinheiro/ABLC. Disponível em: http://www.ablc.com.br/o-cavalo-que-defecava-dinheiro/

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.



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