top of page

O fenômeno gonçalense da rua lotada de crianças, por Mário Lima Jr.


Reprodução Internet
Reprodução Internet

Como qualquer fenômeno natural, não se pode controlar o momento exato em que uma rua de São Gonçalo vai encher de crianças. Principalmente em tempos de pandemia e necessidade de distanciamento social, depois de a violência ter reduzido bastante as antigas brincadeiras ao ar livre nas ruas pouco movimentadas da cidade. O último que vi no meu bairro, há uns quatro ou cinco meses, foi de pura alegria e esquecimento, pelo menos por alguns momentos, da agressão presente nas barricadas, nos muros pichados por facções que se revezam e nos tiroteios.


Era de tarde, provavelmente sábado. Mais ou menos dez crianças brincavam na rua Alberto Mendes. Um número aproximado de meninos e meninas se divertia na Manoel Pereira, que faz esquina com a rua Alberto. Toda hora as crianças da Alberto entravam na Manoel correndo a pé, de bicicleta ou de carrinho de rolimã, aproveitando o embalo da descida do morro. Repetiam esse movimento várias vezes. Jogavam uma partida de futebol, queimado ou pique-esconde, pegavam seus veículos, entravam na rua Manoel fazendo a curva a toda velocidade e depois voltavam para a rua de origem. As crianças da Manoel continuavam brincando, sem prestar atenção nos vizinhos.


Até que, de repente, sem explicação alguma, as crianças da rua Alberto decidiram permanecer na rua Manoel. Se aproximaram do meio da rua e se juntaram ao grupo que já estava ali. Um terceiro grupo, menor, brincando depois da barricada, resolveu ultrapassar a barreira e participar também. A rua parecia o Calçadão de Alcântara em época de Natal. A gritaria invadia a casa das pessoas que, assustadas, apareciam na porta pra ver o que estava acontecendo e logo davam um sorriso que dizia: “Ah, eu moro em uma rua em que as crianças ainda têm o prazer de brincar”.


Os adultos se sentaram no meio-fio e puxaram conversa. No asfalto era aquela bagunça. Adolescentes sem o hábito de brincar na rua se sentiram seguros pra sair, convidados pelo barulho. Gente que eu nunca tinha visto na vida, como uma vizinha de cabelo azul, apareceu a poucos metros da minha casa pra acompanhar a brincadeira. Era a única prevenida, usando máscara, entre crianças que experimentam inúmeros outros riscos além do coronavírus.

Elas se movimentavam como as ondas do mar, só que em múltiplas direções. Uma brincadeira começava com um pequeno grupo num canto. Jogar bafo, por exemplo. Quando o jogo chamava a atenção das demais crianças, todas corriam pra lá pulando e rindo. Às vezes, no auge da diversão, antes que ela perdesse a graça, outro pequeno grupo inventava outra coisa pra fazer, como jogar vôlei. E a onda de crianças se movia pro outro lado, o recomeço constante da alegria.


São Gonçalo não conta com boa infraestrutura de lazer. Talvez seja por isso que de forma espontânea a presença do outro se transforme em imediata fonte de felicidade. Algo que me surpreende desde 1989, ano em que São Gonçalo me acolheu e fiz amigos antes mesmo de descer do caminhão da mudança.

Mário Lima Jr. é escritor.




POLÍTICA

KOTIDIANO

CULTURA

TENDÊNCIAS
& DEBATES

telegram cor.png
bottom of page