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O monstro que compra votos voltou a atacar em São Gonçalo, por Mário Lima Jr.


Reprodução Internet
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Sabe quando você acorda feliz, sem saber que nesse dia a vida vai trazer uma surpresa desagradável? Aconteceu comigo semana passada e a campanha eleitoral ainda nem começou. Passava das 9 horas da manhã e o cachorro não aguentava mais esperar pra fazer cocô. Abri o portão de casa e ele saiu correndo. O cão mal tinha dado a primeira ciscada no mato e ouvi uma voz familiar, atrapalhando a reflexão do bicho e a minha, meio sonolento.


– Rapaz, era com você mesmo que eu queria falar – geralmente não é boa coisa quando somos abordados dessa forma.


– Bom dia, vizinho – respondi no susto virando pra trás, com o outro olho no animal, que às vezes cisma de ir para o meio da rua, na frente dos carros.


– Você já tem candidato a vereador?


Não deu tempo de responder, só de reparar nas verrugas gigantescas acima das sobrancelhas, na barriga saliente à mostra e nos mamilos enrijecidos e peludos do monstro que compra votos.


– É o seguinte, estou apoiando um cara aí, ele vai colocar o hospital do Vila Três pra funcionar. Você sabe, a obra foi concluída e o hospital tá largado há anos. Vai recuperar a indústria naval gonçalense, fiz vários cursos e nunca mais consegui trabalhar, então tô pegando uns votos pra esse candidato. Depois ele vai me dar uma ajuda também, um cargo num posto de saúde.


Quando eu pensava em falar, o homem me interrompia.


– Olha aqui, ó – veio com o celular na mão, mostrando uma mensagem recebida pelo WhatsApp.


– Você só precisa preencher esse formulário com o nome da sua mãe, do seu pai, seu bairro e título de eleitor. Vou te passar o link. Não precisa colocar o endereço todo não, só o bairro.

O bandido era rápido, natural e bem articulado, como se já tivesse atacado outros eleitores centenas de vezes. Com medo de me aproximar demais e talvez ser contaminado pelo coronavírus, consegui ver a mensagem a uma certa distância e reconheci a imagem de um formulário do Google Forms. É assim que se recolhe votos em São Gonçalo hoje. Antes era usada uma folha de A4 e uma prancheta. A tecnologia muda, a putaria continua a mesma.

– Preciso de quarenta votos. Conversei com algumas pessoas ali na favela, mas só tinha título inválido ou cancelado. Esse povo tá tão quebrado que não pode nem votar. Você preenche o formulário, eu ligo pro Cadu, da equipe de campanha do Fabiano Farias, e ele vê se o título é quente na hora. Se tiver pendência, vai trazer problema pra nós dois. Eu consigo te arrumar cinquenta reais.


– Você sabe que isso é crime né? – desengasguei, tendo que levantar um pouco a voz pra conseguir espaço pra falar.


– Crime o quê? Não é crime nada – estalou a língua na boca.


– Isso é crime.


– Todo mundo faz.


– Não deixa de ser crime porque todo mundo faz. Trocar voto por favor ou dinheiro é ilegal. Além disso, você está pedindo informações pessoais, particulares.


A conversa atingiu um ponto insustentável. Pra quebrar o clima, o homem que compra votos mudou de assunto.


– A gente tá apoiando também o Márcio Lopes pra prefeito, ele vem pelo Partido Estadual.


– Não, o Márcio Lopes é do Partido Municipal.


– Tá doido? Deixa eu ligar aqui pro Cadu – o monstro resolveu que se não comprasse meu voto, por vingança me humilharia expondo minha ignorância.


– Alô? Cadu? Qual é o partido do Márcio Lopes?


– Partido Municipal – ouvi o tal do Cadu dizendo do outro lado da linha.


O homem que compra votos pediu desculpas pelo engano, o que me surpreendeu, mas o diálogo tinha alcançado um limite. As quadrilhas espalhadas por São Gonçalo caçando eleitores não sabem nada sobre política honesta, aquela que transforma a cidade onde vivemos em um lugar melhor.


O cachorro tinha feito cocô. Viramos as costas um pro outro e o homem partiu, mancando da perna esquerda e coçando um caroço no ombro, em busca de outra vítima.

Mário Lima Jr. é escritor.




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