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O Troco - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Divulgação internet
Foto: Divulgação internet

Nicanor era pastor presidente da Igreja “DÁ PRA EU QUE EU DOU PRA DEUS,” situada numa cidade vizinha cujo nome não lembro, carregava no peito uma pedra bonita presa numa corrente de ouro feita com dinheiro das doações dos fiéis para que esta fosse sua marca de que era emissário de Deus. Nas costas, o peso desta mesma pedra bonita.


Bem próximo de sua igreja Mãe Fiinha mantinha uma humilde tenda espírita onde recebia seus filhos de santo e todos aqueles que precisassem de oração e conforto. Rezava pela cura de todas as doenças, pedia a Deus e aos seus guias espirituais pela cura das pessoas, pelo emprego, pela moradia e agasalho do corpo e espírito daqueles que na rua moravam. Não cobrava nada por isso.


Ao contrário, tirava do pouco que recebia de sua aposentadoria para ajudar aos mais necessitados. Nicanor passava pela rua em seu carro zero quilômetro adquirido também pela doação dos fiéis para que ele pudesse ter mais mobilidade para “salvar almas perdidas” e quando avistava Mãe Fiinha no portão rezando e acendendo suas velas gritava:


_ Ô macumbeira, você vai queimar no fogo do inferno mensageira de satanás!


Mãe Fiinha olhava com ternura para o homem, erguia as mãos para os céus e dizia:


_ Deus lhe acompanhe e tenha piedade de ti. Que Ogum te ampare nos caminhos da vida!


Nicanor dava uma gargalhada e se ia. Mas ele não se conformava em todas as vezes que passava ver a casa de Mãe Fiinha cheia de pessoas cantando para os santos, dançando e batendo palmas. No dia de São Jorge os festejos de Ogum duraram mais de uma semana com feijoada e cantoria todos os dias.


Numa manhã de terça feira, dia de Ogum, a tenda de Mãe Fiinha amanheceu em cinzas, um incêndio criminoso, todas as imagens quebradas e todo material que não dava pra queimar foi jogado no meio da rua. Enquanto algumas pessoas se revoltavam com o ocorrido, Mãe Fiinha consolava o povo e dizia que Deus proveria recursos para reerguer a casa.


Em seu púlpito, Nicanor gritava aos fiéis:


_ Aqueles que não crêem na palavra queimarão ainda em vida! Está escrito! Vocês estão sendo testemunhas da ira de Deus!


Os fiéis gritavam aleluia e amém enquanto Nicanor rodopiava e louvava na língua dos anjos.

Todos da cidade e de todos os lugares onde a notícia chegou ficaram revoltados com o acontecido e embora Nicanor jurasse de pés juntos que nada tinha haver com aquilo ninguém acreditava. Diversas manifestações foram feitas contra intolerância religiosa, mas Nicanor não estava nem aí.


O tempo foi passando, a tenda foi sendo reerguida e na outra festa de São Jorge, um ano depois, estava sendo reinaugurada. Mãe Fiinha muito feliz ao lado de seus filhos de santo cantava para Ogum quando de repente os tambores pararam de rufar e Nicanor apareceu na porta da tenda, sem camisa, descalço, com uma garrafa de espumante numa das mãos e um cigarro aceso na outra, gargalhando e rebolando incorporado numa pomba gira.


Gritou para continuar a festa que ela iria tomar conta da rua. Passou a noite toda indo e voltando, do início ao final da rua bebendo, gargalhando e rebolando, mexendo com os homens que passavam e às vezes mostrando a bunda. Confessou em alto e bom som todas as falcatruas que fazia em nome do Senhor, das farras em termas masculinas, do assédio aos meninos da escola dominical e até do caso amoroso com outro famoso religioso metido a machista.


Já pela manhã, quando os fiéis já se aglomeravam na porta da igreja e cercavam Nicanor, Ogum saiu à rua, foi até a porta da igreja onde estava Nicanor e bateu com sua espada no chão. Nicanor deu um salto para trás, a pomba gira desincorporou e Nicanor viu aquele povo todo em volta dele olhando-o como se pedissem explicação. Ele sem nada entender implorou a Ogum:


_ Maleme seu Ogum! Me salva! Eu vou me consertar!


Ogum deu uma baforada no charuto e disse:


_ Respeita para ser respeitado. Se o povo de lá pedir socorro, acode. Se o povo de cá precisar de ajuda, a nós recorre.


Ogum voltou para tenda e entrou como um guerreiro volta vitorioso da batalha, ergueu sua espada e bradou:


_ Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!


Ao que o povo responde:


_ Para sempre seja louvado!


Ogum subiu, mas a festa continuou até a tarde.

Nicanor? Não sei que fim levou. Bebi tanto na festa que esqueci de perguntar.

 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.




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