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Os dois lados da moeda, por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Divulgação
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Vinte e dois longos anos olhando para o portão principal do presídio na esperança de vê-lo aberto, o convidando para reencontrar a vida. Naquele dia 08 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, dia de quermesse, procissão, missa, queima de fogos, dia de festa sem fim também em todas as religiões afro brasileiras a Oxum, a orixá das águas doces, ele se viu ali, sem saber o que fazer diante daquele imenso portão aberto parecendo um portal para outra dimensão. Daquela Rua Jansen de Melo que quando ali chegou num camburão preto e branco se via os ônibus da linha C10 da estatal SERVE que circulava o centro de Niterói e o Bairro de Fátima sendo ultrapassados por velozes carros recém-lançados modelo Passat e os cobiçadíssimos fuscas com lanternas enormes apelidadas de Fáfá de Belém até a de hoje com inúmeros carros importados e ônibus com destino até para o Iraque muita coisa aconteceu e ele nem viu.


Era aniversário de Rita, neta de Joaquim e a gurizada ávida por um pedaço de bolo e um copo de refrigerante se aglomerava em volta da mesa com olhos brilhantes e cada um querendo cantar mais alto o parabéns pra você. Urbano Pereira, carinhosamente chamado de “Papinho” pela falta de queixo e excesso de gordura entre o pescoço e a boca, já com seus dezenove anos escreveu um bilhete para o grande amor de sua vida, que nem sabia de sua existência. Naquela confusão de bater palmas e cantar, a sincronia falhou e o bilhete saiu de suas mãos antes da hora e foi parar nas mãos de Rita que ficou rubra e feliz escondendo rápido o bilhete no sutiã. Célio Bombeiro, atento a tudo percebeu e logo após o apagar das velinhas denunciou o caso aos familiares da menina que ao tomarem conhecimento do conteúdo acharam de uma enorme falta de respeito e caíram de pau no pobre Papinho que de todas as maneiras tentava se defender dos golpes vindos de todas as direções.


No afã de se defender pegou uma ripa de madeira pontiaguda e lançou-a a frente sem direção acertando o peito de Carlão mecânico sem nenhuma intenção. Depois de serenada a confusão Carlão e Papinho foram levados ao Pronto Socorro Central de São Gonçalo aonde Carlão veio a falecer e Papinho, preso em flagrante, condenado a vinte e dois anos de prisão por assassinato.


Na verdade o bilhete era para a filha de Gilson do Abil, Lurdinha, que morreu anos depois sem saber do amor que despertara em Urbano Papinho. O velho Joaquim morreu de velhice pensando que a justiça tinha sido feita ao ver preso um safado que faltara com o devido respeito a sua santa netinha.


Todo respeito se esvai quando nossa vaidade se expõe. Se tivessem dado chance ao pobre Papinho de se explicar, o nosso amigo Carlão ainda estaria por aí contando suas piadas e consertando nossos fuscas, depósitos de nossos velhos sonhos. Lurdinha e Papinho poderiam estar hoje abraçados e vendo por cima do muro os netos brincando no quintal ao lado, Célio Bombeiro não teria se acabado na bebida, arrependido de ter começado uma briga sem saber que um ato impensado mudaria para sempre tantos destinos, e, nosso querido Papinho não seria esse arremedo de ser humano caminhando sem direção pela vida procurando um futuro que ficou lá no passado.


Sei caro leitor, que você deve estar se roendo de curiosidade para saber o que estava escrito no bilhete. Eu também.

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.



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