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São Gonçalo como objeto de colecionismo: Bibliofilia, por Rui A. Fernandes


Uma das leituras que fiz, com mais gosto, nos últimos anos, foi O bibliófilo aprendiz, de Rubem Borba de Moraes. Este livro é um misto de relatos de experiências de um semeador e diretor de bibliotecas e um guia inicial para aquele que deseja começar sua coleção de livros. Modestamente, iniciou seu livro afirmando “esse longo convívio com livros de toda sorte ensinou-me alguma coisa sobre eles, creio eu, mas ensinou-me, principalmente, que em matéria de livros tudo quanto sei só serve para mostrar o quanto ignoro. Não há dia que não aprenda alguma coisa. É, talvez, por isso que não me canso de manuseá-los, de folheá-los, de lê-los e de falar deles”. Eis a fala de um apaixonado pelos livros.


Bibliofilia então diz respeito ao colecionismo de livros. O termo origina-se de duas palavras gregas: biblion (livro) e philia (amor). O historiador português João José Alves Dias define o bibliófilo simplesmente como “aquele que ama os livros”. Mas não confundamos bibliofilia com a bibliomania. O primeiro é uma prática metódica de colecionamento, já o segundo é a mania de comprar compulsivamente livros.


O livro é um conjunto de folhas encadernadas, contendo textos manuscritos ou impressos e/ou imagens, que pode ser transportado. É uma produção intelectual individual ou coletiva, que envolve vários agentes: autores, designers, editores, bibliotecários e livreiros. O formato atual é uma herança greco-romana que instituíram o códice, encadernação de pergaminhos. A criação da imprensa de tipos móveis, por Johannes Gutemberg, em 1455, barateou os custos e ampliou a difusão dos livros. Atualmente vivemos a expansão dos livros virtuais: e-books.


Normalmente atribui-se ao bibliófilo o colecionismo de obras importantes e raras, categorias não consensuais e controversas. Quem define o que é importante e o que é raro? Essas definições são fluídas, pois se relacionam com o contexto sociocultural e com os interesses dos colecionadores e das instituições de guarda. Um dos principais objetos de desejo de um bibliófilo são as primeiras edições. Sua relevância está em ter sido, normalmente, aquela que veio a luz com a aprovação de seu autor que acompanhou o processo de fabricação do livro. Deleite maior para o colecionador é se esse volume for autografado. Um segundo critério de seleção é o impacto que a obra produziu sobre o seu tempo e na história. Outros elementos que são levados em consideração são tiragem produzida, ilustrações presentes, elementos e projetos editoriais.


Instrumentos importantes para todos os colecionadores são os catálogos/inventários/bibliografias. No caso de São Gonçalo contamos com dois levantamentos publicados. O primeiro foi redigido por Salvador Mata e Silva, em 1987, e relacionou 223 títulos relativos a São Gonçalo: 174 obras de autores gonçalense e 49 publicações sobre a cidade. Em sua breve apresentação, o historiador afirmava que “neste livro, não se pretende apresentar uma bibliografia completa dos autores gonçaleses, porém tentar reunir o máximo de obras escritas por gonçalenses. Na segunda parte, nós prestamos uma colaboração aos pesquisadores e estudiosos da história de São Gonçalo”. O livreto ainda conta com uma relação de impressos, jornais e revistas, editados na cidade e a resenha histórica da Academia Gonçalense de Letras, Artes e Ciências (AGLAC).


Um segundo inventário foi publicado por Marcia Gonçalves e Luís Reznik no Guia de Fontes para a história de São Gonçalo, publicado em 1999, e que conta com 51 títulos. “As duas frentes que esboçamos no início dos trabalhos – o levantamento bibliográfico e a pesquisa documental” levaram a produção do guia. Projeto suscitado pelo dever do ofício de orientar monografias de graduação de historiadores em formação da Faculdade de Formação de Professores (UERJ). Além da indicação de um conjunto de acervos que possuem documentação para a pesquisa histórica sobre a localidade e da listagem bibliográfica, o trabalho conta com o estudo de Sandra Mara de Lima e Silva sobre a historiografia local.


Uma coleção de obras sobre o município deverá abarcar os diversos campos do saber – literatura, geografia, história, sociologia, antropologia, folclore, biologia etc. – e gêneros textuais – crônicas, contos, poesia, romances, ensaios, estudos, biografias, relatórios etc.


Como classificar os livros relativos a São Gonçalo? Uma possibilidade é utilizar três categorias. A primeira seria a de livros que tomam as experiências vividas no município como temáticas. Uma segunda refere-se à produção de autores, nativos ou adotivos, locais. Por fim, um último conjunto podem ser as obras editadas na cidade. Este último conjunto nos permite pensar a inserção local no mercado gráfico e de editoração de impressos. Pensando as questões de tiragem a grande maioria dos livros são editados e distribuídos pelo próprio autor. São pequenas tiragens, nascem raros!


Os primeiros livros, que trazem dados sobre a região que atualmente compõe o município de São Gonçalo, são os relatos de viajantes franceses e portugueses que estiveram na baía de Guanabara no século XVI, como André Thevet, Jean de Lery e Gabriel Soares de Souza. Estes inauguraram esse gênero que perdurou até, pelo menos, o século XIX com os livros do Frei Agostinho de Santa Maria, Monsenhor Pizarro e Araújo, John Luccock, Príncipe Maximiliano, Maria Graham, Milliet de Saint Adolphe e Saint-Hillaire.


Estudos corográficos entre o final do século XIX e princípios do XX – como os de Antônio José Caetano da Silva, Júlio Pompeu de Castro Albuquerque, Clodomiro Vasconcellos, Escragnolle Dória e Jorge Silva – foram coroados com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – que, desde a década de 1940 publica sinopses estatísticas e enciclopédias – que reúnem dados de matrizes diversas possibilitando a definição do perfil da localidade ao longo desse período.


No campo literário Alberto José de Paula Silva, Armando Gonçalves e Anísio Monteiro, na passagem do século XIX para o XX inauguraram a inserção local entre os amantes da poesia. Ao longo do século XX temos autores como Geraldo Lemos, Gilvan Carneiro da Silva, Rachel Santo Antônio, Fernando Félix de Carvalho, Zé Salvador, Erick Bernardes, que desenvolveram vários gêneros: contos, crônicas, poesias, trovas, romances, haicais, cordéis etc.


A historiografia local celebra o livro de Luís Palmier como o primeiro estudo do gênero na cidade. Seguiram os trabalhos de Homero Guião, Salvador Mata e Silva, Evadyr Molina e Maria Nelma de Carvalho Braga como obras de referência. Desde a década de 2000 inúmeros trabalhos acadêmicos – monografias, dissertações e teses – tem adensado o campo, como o livro de Luciano Tardock. Neste sentido destaca-se também a produção do Grupo de Pesquisa História de São Gonçalo: Memória e Identidade, sediado na FFP/UERJ, criado pelos professores Luís Reznik e Marcia Gonçalves.


Os estudos ambientais têm nas pesquisas e livros do professor Marcelo Guerra um manancial importante para todos os que se dedicam a conhecer os aspectos geo-ambientais locais.

Verônica Inaciola e Luís Gustavo Mendel são pesquisadores da cultura popular, especialmente, das Folias de Reis. Campo vasto que conta também com o trabalho de Bruno Cesar Santos de Souza, sobre o Grêmio Recreativo Escola de Samba Porto da Pedra, e Bruno Mendes Mesquita sobre o rock e a ocupação de espaços – praças – na cidade.


Análises e estudos sobre a situação educacional municipal têm ampla produção entre os professores da Faculdade de Formação de Professores. Apenas a título de exemplo podemos citar os trabalhos de Denise Terra, Maria Teresa Goudard Tavares e Mairce da Silva Araújo.

Não é possível fazer, aqui, uma relação exaustiva de temáticas e autores de obras relativas aqueles três critérios elencados. Isso ficará para um trabalho futuro. Esse levantamento superficial indica que, diferente de outros tempos, São Gonçalo se tornou objeto tanto da musa inspiradora quanto de estudos os mais diversos. Livros existem e são importantes veículos para o maior conhecimento sobre a cidade de São Gonçalo.


Bibliografia:


DIAS, João José Alves Dias. Iniciação à bibliofilia. 2ª ed. Lisboa: Pró-Associação Portuguesa de Alfarrabistas, 2ª Feira do Livro Antigo, 1994.

FEBVRE, Lucien. O aparecimento do livro. São Paulo: EdUnesp, 1992.

GONÇALVES, Marcia de Almeida; REZNIK, Luís (Orgs.). Guia de fontes para a história de São Gonçalo. São Gonçalo: UERJ/FFP/DCH/Laboratório de Pesquisa Histórica, 1999.

MORAES, Rubem Borba de. O bibliófilo aprendiz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

SILVA, Salvador Mata e. Bibliografia de autores gonçalenses. Niterói: Gráfica Eletrônica Ltda., 1987.

Scortecci, João. Guia do Profissional do Livro. São Paulo: Scortecci, 2007.


Imagens:

MARIA, Agostinho de Santa. Santuário mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Tomo 10. Rio de Janeiro: INEPAC, 2007.


ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1820. 10 vols.


SAINT-ADOLPHE, J. C. R. Milliet de. Diccionario Geographico, historico e descriptivo do Império do Brazil. Pariz: J. P. Aillaud, 1845. 2 Vols.


SILVA, Alberto J. de P. e. Matinaes. Poesias. Rio de Janeiro: Empresa Nacional, 1885.



PALMIER, Luiz. São Gonçalo, cinquentenário. História, geografia, estatística. Rio de Janeiro: Serviços Gráficos do IBGE, 1940.


SANTOS, Marcelo Guerra (Org.). Estudos ambientais em regiões metropolitanas. São Gonçalo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.


CRUZ, Verônica Inaciola Costa Farias da. Folias de Reis em São Gonçalo. Irmandade e patrimônio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2018.


ARAÚJO, Mairce da Silva; PEREZ, Carmem Lúcia Vidal; TAVARES, Maria Tereza Goudard. Caderno d@ professor@ alfabetizador@. Oficinas de alfabetização patrimonial e formação de professores. Rio de Janeiro: H. P. Comunicação, 2006.


Rui Aniceto Fernandes é professor de História do Departamento de Ciências Humanas (DCH) da Faculdade de Formação de Professores (FFP-UERJ).




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