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São Gonçalo resiste na subida da rua Francisco Portela, por Mário Lima Jr.


Foto: Vagner Rosa
Foto: Vagner Rosa

Há muitos anos quero compartilhar esse sentimento. Parece que São Gonçalo supera seus problemas e continua existindo graças ao que acontece em uma longa subida que começa na rua Francisco Portela, logo após o cemitério que leva o nome da cidade. Cada centímetro de inclinação na pista é mantido por uma deficiência municipal (elas são muitas). Ao fim da subida São Gonçalo inevitavelmente surge trazendo, além dos obstáculos, povo, história, vida e futuro, como se estivesse morta e decidisse levantar.


A experiência é mais intensa de carro, pegando o retorno da rua Abílio José de Mattos, vindo do Porto da Pedra ou da avenida Presidente Kennedy. Acelero, de propósito, no ponto mais acentuado do retorno e por causa disso uma vez quase bati num ônibus. A velocidade ajuda a priorizar o sentimento (ao invés do pensamento), a alcançar São Gonçalo e não ficar pra trás.


No início da subida, onde a cidade ainda está enfraquecida, perto do Centro Educacional Monteiro Lobato, há muitos imóveis disponíveis pra aluguel. Um pouco à frente, o bonito prédio do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos me lembra como eu ficava nervoso durante as aulas de Inglês na adolescência. Logo depois aparece a Câmara Municipal de São Gonçalo e ali se firma a certeza de que a cidade não está completa, continua imatura, se desenvolvendo.


Na praça Zé Garoto, berço da criação do município, oásis arborizado do centro urbano, tenho uma recordação mais recente. Durante o último festival gastronômico organizado ali, onde hambúrgueres foram vendidos a R$ 35, um copo de cerveja de 300 ml custava R$ 15 e eu tive orgulho da capacidade municipal de empreender para a classe média, um moleque de roupa encardida implorava pra alguém comprar um saquinho de balas a R$ 1, andando de lá pra cá sem sucesso. A partir desse dia a praça Zé Garoto se tornou daquele garoto, que devia ter uns sete anos de idade, pelo menos na minha memória.


São Gonçalo toma forma. A rua Coronel Moreira César assume o controle sobre a Francisco Portela, mas a subida é única. Passam o complexo de hospitais públicos, local de tanta carência e improviso, e a Casa das Artes, onde as obras dos artistas locais são jogadas em um cubículo apertado depois de expostas. A Igreja Matriz, outro marco histórico aconchegante no Centro, mostra rachaduras na fachada que assustam mas não impedem a igreja de dominar o cenário até a Prefeitura, onde o poder nada contribui pelo bem-estar popular.


Do outro lado da rua as autoridades políticas e empresários comem, bebem e se divertem mijando no gelo dos mictórios em banheiros com ar-condicionado. São eles que gastaram milhões e mantiveram o Teatro Municipal fechado, aguardando entreter e educar o povo. Poucos metros adiante está o Espaço Salvatori, que não vive seu melhor momento e guarda no ar a ressaca de um milhão de gonçalenses.


Ao passar no Rodo, o prazer de andar na praça, comprar um jornal ou uma pipoca acompanha o movimento das pessoas sofrendo embaixo do sol. No pequeno shopping da região fiz passeios com amigos há mais de 20 anos atrás. Essa lembrança me diz que estou no território que é meu, e eu sou dele. Aí o sentimento de renovação em que o passado estimula o presente problemático vai diminuindo. O carro avança, São Gonçalo fica sem impulso. Imóveis decadentes esperando aluguel se destacam na paisagem outra vez, após o abandonado Centro Cultural Joaquim Lavoura. Até o dia em que alguém fizer o retorno na Abílio José de Mattos e perceber São Gonçalo resistindo de novo.

Mário Lima Jr. é escritor.




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