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Saudade daqueles pés de jamelão... Por Sammis Reachers


Foto: Reprodução Internet
Foto: Reprodução Internet

Minha infância transcorreu, sofrida e peralta, nos doces anos oitenta, na fronteira entre os bairros gonçalenses de Tribobó e Arsenal. Tempos de carestia e uma ou outra fome. Bem, a fome obriga, já dizia – ou não? – um filósofo, e nos obrigávamos a perambular pelas matas e quintais alheios em busca de vitaminas e proteínas que nasciam em forma de pomos. Mas nem só de frutas surrupiadas viviam os sobreviventes do Palha Seca. Havia, no espaço entorno, alguns frutos “ao ar livre”, em terrenos baldios ou na mata.


Mas era coisa misérrima, de abalar uma infância. Recordo dois pés de ingá, dos quais o mais próximo dava frutos do mais insosso dos sabores: low carb, sugar free, zero açúcar. Hoje, faria sucesso, mas naqueles idos... O outro, situado numa pequena ravina e ao lado de uma nascente, esse sim dava doces bagas; mas eram sempre poucas, para muitos esfaimados que circulavam por ali.



Outro signo da miséria com que a natura nos solapava era o araçá. Eita arbustiva sofrida! Enquanto sua prima, a goiabeira, é famosa por dar frutos às toneladas, os mirrados pés de araçá espalhados pelos morros do entorno davam de quando em vez (uma vez ao ano?) alguns frutinhos. Dois, três num pé. Sim, ao menos eram deliciosos.


Apenas uma frutinha tínhamos em abundância e livre de latifundiários, despida de cercas, não vigiada por cachorros ou espingardas de sal grosso: Os jamelões.


Ao contrário dos nativos ingá e araçá, o jamelão é originário do sul/sudeste asiático, mais especificamente da Índia, a mesma pátria ou mundo (pois a Índia é um mundo à parte) que nos deu a manga. O jamelão, se você não conhece, é fruta que dá em pencas, e também em pencas ela possui nomes. Abra o peito e apare, segure a rajada nomenclatural: Jambolão, jamborão, baguaçu, jalão, joão-bolão, topin, manjelão, azeitona-preta, ameixa roxa, baga-de-freira, oliveira, azeitona-roxa, brinco-de-viúva e ainda guapê. E sabe-se lá quais nomes mais.


Aqui tínhamos uma ampla e plana área a que chamávamos de “Sek” – sabe-se lá por quê. Talvez fosse propriedade de uma antiga empreiteira. Bem, a Sek abrigava o campo do Nazaré, famoso campo (e time homônimo) de peladas regional. Mas, de futebol só fui gostar após os quatorze anos. Naquela altura, eram os quase trinta (valei-me Deus!) pés de jamelão que me solicitavam todas as mesuras. As maiores daquelas árvores chegavam a mais de dez metros, e impunham-se na paisagem, como gigantes – de quem nos aproximávamos com um misto de amor e temor, como se fossem totens.



Ah, quantas tardes dediquei a empoleirar-me com meus Renato “Cascão”, Lucinano “Neném”, Wilson e outros amigos por aqueles galhos, e passar horas e horas colhendo o arroxeado pomo, e papeando – jogando conversa fora com a repetitiva e ampla frequência com que cuspíamos os caroços.


A cada ano, aguardávamos com sofreguidão a estação da frutinha, e a comíamos até sofrer de prisão de ventre. Sim, a fartura tinha um efeito colateral severo.


“Pelávamos” um pé até exauri-lo, como gafanhotos; enquanto isso, outro chegava “no ponto” de colheita. Não era fruta que se prestasse a comércio e armazenamento: Guardada, rapidamente mudava de sabor, o que era tolerado por muito poucos. Era fruta esculpida pelo Deus dos moleques para ser comida no pé.



Até hoje, quando vejo um pé de jamelão à beira duma estrada – e há deles em beiras de estradas por todo o estado do Rio de Janeiro, e todo o Brasil – sinto uma melancolia feliz, e uma tristeza por não poder achegar-me. De mais a mais, já não tenho preparo para escalar rudes troncos, nem peso para arriscar a sorte sobre finos galhos.


Hoje, toda a região da Sek, que fica na rua Dalva Raposo, foi ocupada por um condomínio, de estranho nome: Atenas. A pátria da democracia nomeia uma usurpação latifundiária que nos roubou nosso campo de anarquia, nossa livre-lavoura de prazer e sustância.

É o progresso.


* * *

Essa e outras crônicas hilárias (algumas já publicadas aqui no Jornal Daki) fazem parte de meu novo livro, Renato Cascão & Sammy Maluco: Uma dupla do balacobaco. O livro será lançado no dia 21, às 14h, na terceira edição do FLISGO, o Festival Literário de São Gonçalo. A FLISGO acontecerá dos dias 19 a 22, das 10h às 19h. Estarei lá durante todo o evento, e espero você!

Sammis Reachers, nascido por acaso em Niterói mas gonçalense desde sempre, é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos, e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.









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