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“...Se preciso fosse...” Por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Em cima da cristaleira havia uma foto de José Canhoto Trigueiro. A gente chamava ele de seu Zé.


Vindo lá de Pernambuco na década de 50 firmou ponto no bairro Paraíso aqui em São Gonçalo como relojoeiro e joalheiro. A arte de lidar com metais preciosos e joias delicadas, de difícil e melindroso manuseio herdou dos avós escravizados. Casou-se com Denair e quando o único filho nasceu queria por o nome de José, já que toda linhagem masculina da família se chamava assim. Depois de muita discussão Denair o convenceu a chamar o menino de Eliezer que é um nome bíblico. Quando a família perguntava o porquê de não ter atendido a vontade do marido ela respondia:


_ Eu também tenho direito! Isso é coisa de Zé!


A bebida, o cigarro e as noites mal dormidas em virtude das farras até altas horas no bar do Maurício ali no Barreto trouxeram a tuberculose para os pulmões e a úlcera crônica para o estômago. Apesar de lutar com todas as forças feito um Maguila dos ringues, foi a nocaute no último dos 59 rounds da vida. Era sagrado, depois de dançar uma gafieira no clube da Costeira, ali na esquina da rua Dr. March com General Castrioto, na Praça do Barreto, atravessar a rua e beber a saideira no bar do Maurício.


Numa dessas travessias, depois de beber um pouco a mais do que de costume, a vista escureceu, o mundo girou e aquela imagem de um céu azul com nuvens brancas e anjos aos pés da Virgem Maria que habitava todas as salas de todas as casas de nossa infância foi sua última visão.


Denair, congregada Mariana da Igreja de São José Operário e Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, rezava fervorosamente por sua alma e cuidava para que o filho, que agora tomava conta do comércio familiar não seguisse os caminhos do pai. Eliezer, um rapagão bonito que encantava as moçoilas da região era o orgulho da mãe. Trabalhava e estudava durante a semana, aos sábados passava as tardes em reuniões bíblicas e o domingo era reservado para lecionar o catecismo às crianças. Tudo fluindo as mil maravilhas até que numa sexta feira Benício o convidasse para uma roda de viola que aconteceria na casa de uns amigos. Coisa familiar, adultos e crianças ocupando o mesmo espaço, famílias reunidas numa grande confraternização. Lá conheceu os balanços do Bebeto, Serginho Meriti, o partido alto, o samba brejeiro, a batucada, o samba enredo, a poesia, a bossa nova e pra acompanhar tudo isso a caipirinha, a cerveja e o olhar castanho e arrebatador de Jandira.


Daquela tarde ao altar com flores amarelas e o emocionante coral do Grupo Jovem do Gradim foram pouco mais de dois anos. A vida de Eliezer e Jandira foi como num conto de fadas. Sempre juntos tanto nas missas quanto nas rodas de viola, e, depois de algum tempo também nos bailes no clube Cinco de Julho ao som da Orquestra Tabajara. Eliezer sempre foi católico, misseiro mesmo, de todos os domingos. A mãe até hoje não entende o porquê de todas as sextas feiras quando sai com a esposa usa o terno branco com sapatos bicolor e chapéu panamá. Antes de sair passa na cristaleira, beija o retrato do Pai e sorri o sorriso da felicidade. Os olhos dele são tão brilhantes quanto o ouro do crucifixo que carrega no cordão de ouro. Com Jandira, sua esposa, parece bailar ao passarem pela rua num andar sincopado como um samba do Luiz Grande. É uma mistura de não sei o que com não sei o que lá.


Denair, da janela vela o casal, olha pra esse céu de estrelas visíveis somente aos olhos de mãe, suspira, volta os olhos pra cristaleira e comenta com seus botões: Isso é coisa de Zé! Fecha a janela e vai dormir o sono dos justos. Nos sonhos uma última dança com o amado Zé ao som de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez...”

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.




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