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São Gonçalo vende paçoca no sinal da Chico Mendes - por Mário Lima Jr.


Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

São Gonçalo chega de manhã, perto de 8 horas, encosta um carrinho de bebê desbotado embaixo da marquise de um bar abandonado na Praça Chico Mendes e pendura os saquinhos de plástico fino, enrolados com duas paçocas no dia anterior, sobre os retrovisores dos veículos que param no sinal de trânsito da praça.





No carrinho o dia começa com impaciência. São Gonçalo balança braços e pernas com velocidade, chupa o polegar da mão direita, chora, olha prum lado e pro outro com olhar de espanto, de quem quer ir embora dali imediatamente, coça a cabeça e assiste uma cena terrível sem poder fazer nada. Ainda imatura e precisando de cuidados, São Gonçalo vê sua mãe e seu pai andando sem parar, sempre o mesmo trecho de aproximadamente cinquenta metros, colocando um saquinho de paçoca em cada carro parado, estendendo a mão para entregá-lo quando o vidro da janela se abre, recebendo algo de volta, e milhares de vezes a mesma sequência que de tão chata logo desperta a fome.



De pé, São Gonçalo não pensa muito na tristeza da vida. Se pensar, sua filha no carrinho pode perceber a fraqueza e exigir sua presença com um choro mais forte. São Gonçalo tenta agir mecanicamente, o mais rápido possível. Quanto mais carros alcançar, maiores são as chances de vender uma paçoca. Já sabe quanto tempo leva para o semáforo abrir, São Gonçalo só não se preocupa com expressar esse conhecimento em números. O importante é que sua mulher, aguardando lá no início da fila de veículos, recolha os saquinhos com precisão quando os carros avançarem para que o produto não caia no chão e amasse. Com a ajuda dela, São Gonçalo reconhece que trabalha melhor porque não precisa voltar correndo. Por isso admite as cantadas dos motoristas safados para sua esposa, tão jovem que parece adolescente. Alguns aceleram pra fazer o saquinho de paçocas cair e a mulher abaixar pra pegar. Outros acariciam ou seguram na mão dela quando entregam o dinheiro da paçoca, que custa só 1 real.



Quando decidiu ajudar o marido, São Gonçalo se sentia suja depois que um homem oferecia mais dinheiro por sexo. Com o tempo, aprendeu que a maldade dos motoristas não faz parte dela. Existem também aqueles que entregam uma moeda sempre que param no semáforo, por gentileza, sem levar a paçoca e sem toque algum no corpo dela. São Gonçalo já foi chamada de vagabunda, roubada por motoristas que não pagaram e desprezada por vidros fechados, mas nunca se sentiu humilhada. A filha está lá, presa no carrinho, e precisa desse esforço.



Se conseguir o suficiente para comer, São Gonçalo se reúne embaixo da marquise e divide aquilo que for possível comprar. É o único momento do dia em que São Gonçalo está no mesmo espaço e troca algumas palavras curtas, secas, a atenção no movimento do trânsito nunca é perdida. De repente a cidade se levanta do tijolo onde estava sentada e recomeça a pendurar os saquinhos de paçoca.

Mário Lima Jr. é escritor.



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