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Tardonho, o lesado, por Sammis Reachers


Ele, o acompanhante do cosia ruim - Contribuição do editor/Arte a partir de Foto Divulgação
Ele, o acompanhante do cosia ruim - Contribuição do editor/Arte a partir de Foto Divulgação

Era o anticentro de tudo: Nadificado nas desimportâncias da vida, periférico em sua vacuidade.


Inimune a qualquer doença viral ou bacteriana, acumulara internações desde os zero anos, e se vivo estava era por pura graça e operosidade de Deus, que tinha plano naquela vida, embora eu divide – jamais de Deus, mas do plano.


De toda forma, enquanto não era tempo, não chegava kairós daquele plano, Tardonho chafurdava no charco dito sofá-da-sala, comendo Cheetos e outros simulacros de isopor, proibido desde a tenra idade de brincar na rua (rua, chefatura do inferno que se o visse o devoraria, palavras de mamãe).


E mamãe arcara com tudo: Abandonada pelo traste reprodutor, assumira as carrapetas e multiplicara-se para dar o melhor ao tesourinho, cujo nome estava até tatuado em sua nunca. Pecou pelo excesso? E quem nunca o fez?


Sua aborrescência transcorreu ou melhor, transarrastou-se maratonando animes e séries, re-maratonando, cercado no cercadinho, sonhando ou sonho-empunhando as meninas que nunca beijara – ou deixara de beijar, perdido o primeiro e único emprego e o poder de bancar estripulias no Burguer King, que o otariano era desses, ou só sabia assim.


Mas o tempo passa e a vida é um revertério sem freio desses de transtornar criança lerdona, aquelazinha a mais-boba-da-rua, patinho no meio de gansos pescoçudos, em camarada de ímpeto e responsa, avestruz escoiceador parido pra ser capitão na vida – e você, leitor, talvez me apontará dois ou três exemplos aí dos seus. Era caso de Tardonho, que do meio de tanta leseira, eclodiu como uma borboleta que explode o casulo que a reprimia.


Veio o segundo emprego, fruto de muito QI e muita insistência de sua ainda bela & cobiçada mamãe – meritocracia, enfim. Mas o bitelo era outro, e dentro do possível ascendeu na firma. Mimoso boa pinta, conheceu galega e logo casou-se.


Mulato sevado à Nescau na barra da saia de mamãe, que dormia de pijaminha da Disney até os 16 e era chamado de neném até os 18, sonhava agora com armas de fogo, citava de chofre marcas e calibres – Tardonho, o que nunca dera um soco na cara de ninguém e nem levara, que o portãozinho de casa, sempre trancado, impedia.


Tinha explicativa a tão tanta extravagância: O maromba, agora quase um armário mas que nunca carregou um balde de areia na vida, desfraldara a assistir vídeos de Olavo de Carvalho – indicação do cunhado, milico catarinense que morava em São Paulo e com quem Tardonho se identificara de pronto, numa dessas amizades platônicas cuja reciprocidade era apenas fingida. Bem, quem nunca?


Preto – coisa que sua mãe nunca o deixara sentir-se – era agora racista; pobre ou ainda pobre, pregava o estado mínimo, Tardonho que se achava o tal mas dependia ainda do salário da mamãe pra metade de tudo em sua vida – do carro que comprara à casinha que estava quitando e o faria até bater as botas; da faculdade em que se matriculara – Direito, claro, pois seria o quê, Filosofia?, às latas de Leite NAN pro mimosinho que lhe nascera, quebradiço feito plantinha suculenta, único neto de vovó, que já planejava até uma nova daquelas tatuagens broxantes.


Ontem cruzei com Tardonho, dentição perfeita & olhar altivo no carrão 2015 que a mamãe daquele pai de família barbado e marombado de 35 anos praticamente pagou sozinha. No para-brisa traseiro, um imenso, anacrônico adesivo do Aliança pelo Brasil, aquele partido da arruela de fogo, aquele partido que não foi ou não é, o que nunca existiu nem existirá.


Formado desde o pré em colégio particular – esses bancos-de-sangue industrializados que vivem de deixar educadores na anemia – mas leitor de apenas oito livros na vida, monoglota, patriota, auto-proclamado especialista em virologia e apaixonado detrator dos chineses – tudo bem, quem nunca, seu império será mesmo ainda pior que o norte-americano – fiquei sabendo que em 2022 Tardonho quer se lançar candidato. Sem escalas ou degraus, que ele é desses: Direto a Deputado Federal!


Na maciota, como quem já domina o métier da politicagem, planeja até voltar a falar com meia família, a quem dantes fazia de conta que inexistiam, aqueles crioulos. O álibi do agora conservador, que nunca foi dado a criatividades, será espelho do que deu tão certo para seu ídolo, o católico-nominal-casamenteiro-e-capitão-expulso-do-Exército, o morador do Vivendas da Barra e analfabeto funcional que, eleito democraticamente, hoje comanda Pindorama, esse navio sem leme: “Jesus, Tardonho! Pouco importa quem ele tenha sido; use o nome de Jesus. Treine diante do espelho, Tardonho: Falando com ímpeto, com capricho na entonação, tu enganas até a cristão verdadeiro. O Natal tá aí, Cristo nasceu, reúna a família.”


É a vida, revertério sem freio. Te cuida, Hélio Negão!

 

Alguns livros (gratuitos) que escrevi ou organizei podem ser baixados AQUI. Um pouco de poesia experimental? Eu experimento AQUI.

Sammis Reachers, nascido por acaso em Niterói mas gonçalense desde sempre, é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos, e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.


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