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Uma 'Simpatia pelo demônio', no romance de Bernardo Carvalho

Por Erick Bernardes


O romance Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho (2016), é uma narrativa em terceira pessoa, cujo enredo gira em torno de Rato, um agente humanitário locado em Nova Iorque e de personalidade contraditória. Ao beirar os seus cinquenta e cinco anos de idade, sendo considerado um Coach reconhecido internacionalmente, e autor do célebre Tratado sobre a violência, esse conceituado ativista humanitário viaja o mundo ministrando palestras sobre temáticas de conflitos étnico-religiosos. No entanto, após alguns reveses da vida, o protagonista, marido e pai de família, aparentemente exemplar, vê a sua vida pessoal e profissional subitamente desmoronar.

A trama possui dois fios condutores estruturais: uma linha narrativa que conduzirá o leitor à vida amorosa de Rato, munindo a malha textual de peculiaridades típicas de uma história cotidiana acerca de um indivíduo em suas crises conjugais, e outra, que incide sobre a vida pública desse protagonista anti-herói. Esta estrutura amplia a percepção do leitor sobre assuntos polêmicos e provocadores, tais como: radicalismos religiosos, a relação político-econômica proveniente dos conflitos armados e assuntos globais de conspiração política.

Ao discorrer sobre a aventura (ou seria desventura?) de Rato, quando este tenta cumprir a missão de pagar o resgate por alguém incógnito ao grupo radical terrorista, o narrador não hesita em pontuar a história com explanações críticas, muito próximas das reflexões acerca da civilização e da barbárie extraídas do pensamento de Theodor Adorno e Walter Benjamin, referidos pela própria voz narrativa. Conforme:


O homem almeja a paz quando já não aguenta lutar ou enquanto dura a memória do horror, que costuma ser curta e caracteriza a fase gloriosa dos processos civilizatórios fadados a terminar em guerra. Basta dar tempo ao tempo para que, recuperadas as forças, o entusiasmo se transforme em rancor, o homem se esqueça do que passou e se prepare novamente para o ataque exigido pelas circunstâncias de sempre, mas que ele verá como novas e inesperadas. (CARVALHO, 2016, p. 30)

Desse modo, notamos que o horror transformado em espetáculo revela-se elemento preponderante na configuração da trama de Simpatia pelo demônio (2016), evidenciado por um impasse ético criado pelo protagonista, quando este carrega consigo “adereços” de guerra, provenientes dos lugares dominados pela violência pelos quais passou. Essas atitudes contribuíram, em parte, para o começo do declínio da sua carreira, porque aqueles “espólios” transformados em souveniers, oriundos dos países em batalha, e que são ostentados pelo personagem central, revelaram-se talismãs da queda demoníaca de quem outrora fora símbolo do “bom” serviço humanitário. Soma-se a isso, o escândalo sexual resultante da armadilha engendrada por um mexicano chamado chiuaua (ex-amante e algoz do Rato) e o personagem denominado Palhaço. O que fez com que a relação homossexual, entre o portador da alcunha canina e o agente humanitário, reverberasse na mídia mundial como um suposto estupro com motivações homofóbicas, decorrente de uma farsa inventada pelo neurocientista mexicano, no intuito de difamar o agente humanitário.

Do céu ao inferno e, sem muitas delongas, de figura conhecida, ora simpática ora desacreditada pela própria agência na qual o personagem trabalhava, o que nos salta aos olhos no texto de Bernardo Carvalho é um sujeito em crise sob múltiplas relações, sejam elas íntimas ou públicas, intrínsecas ou extrínsecas ao próprio protagonista. De acordo com Marilena Chauí, parafraseando Walter Benjamin, a barbárie “não está no exterior, mas é interno ao movimento de criação e transmissão da cultura” abordados em Simpatia pelo demônio, pois, para nós, o enredo em questão contemplaria um problema sociopolítico: “o cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos e (que) conhece o preço de infâmia de cada monumento da civilização” (CHAUÍ, 2013, s/p), a cultura dominante (o ocidente) em vias de aniquilamento do outro (o oriente).


Vale ressaltar, que esta receita narrativa de conflitos bélicos entre civis não é nova, as circunstâncias romanescas é que são outras, pois Bernardo Carvalho já havia se utilizado da fórmula de relacionar um panorama global de peripécias amorosas e familiares entre os seus personagens, construído sobre o pano de fundo de guerras étnicas e religiosas. Em outras palavras, se em O filho da mãe (romance publicado em 2009) a trama evidenciava o trânsito de personagens por países como Brasil, Guiana-francesa, Suriname, Rússia e Chechênia, atrelados ao tema da violência, agora o cenário da ação em Simpatia pelo demônio - embora inclua vai e vens narrativos pontuados por cidades como São Paulo, Nova Iorque, Berlim –, isso permite ao autor se valer do ingrediente psicológico, semelhante aos modos analíticos da escola freudiana na construção do perfil dos seus personagens. Ademais, assim como fizera em Reprodução (2013), entre uma ou outra referência de Twitter ou Skype, o tema da crise existencial também é explorado pertinentemente neste seu último romance.


No entanto, de maneira distinta dos seus livros anteriores, em Simpatia pelo demônio (2016), é a caracterização da estrutura “aventuresca” que abre espaço para os moldes caricaturais na criação dos seus personagens. Dessa forma, se por um lado, a alcunha do protagonista Rato denota mobilidade, por atravessar zonas perigosas e vias escusas, por outro lado, seu ex-amante e algoz, chiuaua (nota-se que a letra inicial da raça canina é minúscula) se nos apresenta como uma referência depreciativa, tal qual um sujeito mimado e egocêntrico, e que preferia ser chamado de “raposinha” na intimidade. Além da figura do Palhaço, personagem cujas atitudes na trama se afiguram a própria antítese semântica de um personagem circense: em vez de alegria, vemos a melancolia e o sadismo desvelar-se, sobretudo, durante uma inesperada conversa com o protagonista no avião.


Assim, somado ao aspecto caricatural dos personagens e da estrutura fabular da trama, podemos afirmar que para além do teor psicológico que lhe é peculiar, este último romance de Bernardo Carvalho transita pela ludicidade das pequenas ações cotidianas, quando, por exemplo, o “Palhaço o levava (o chiuaua) para passear, fazia todas as suas vontades e o deixava brincar livremente” (2016, p. 123). Esse personagem caricatural, terceiro elemento nuclear na relação amorosa, mestre da comicidade, não hesitava em tratá-lo “como um cãozinho de estimação pulando nas pernas de estranhos e cheirando o rabo de outros cães, até que se aborrecia (...) e o arrastava de volta para casa, na coleira” (CARVALHO, 2016, p.123). De acordo com Camila Holdefer:

Apesar da densidade do protagonista e de seu amante, o próprio Bernardo Carvalho ressalta, na entrevista concedida ao Livros abertos, que chamar os personagens de Rato e chihuahua reforça o tom de fábula da narrativa. Qual é a moral, se há alguma? O amor como tábua de salvação para romper com o “percurso miserável de um indivíduo do nascimento à morte”? É apenas uma das muitas ressonâncias de um dos livros mais brilhantes do ano. (HOLDEFER, 2016, s\p)

Portanto, entre um aspecto ou outro da barbárie em nossa civilização, e o artifício fabular narrativo de um inusitado triângulo amoroso, o recurso de construção textual se assemelha ao teatro do absurdo, ora com problemas hiperbólicos como a guerra entre civis e o sequestro internacional baseado em conspirações terroristas, ora como uma história de amor e perversão. Enfim, entre um homem-bomba e o sequestro planejado por radicais religiosos, conjugado ao enredo amoroso de três personagens que beiram a “comédia pastelão”, a obra Simpatia pelo demônio (2016) se nos apresenta como uma provocação, ou melhor, uma reflexão acerca da civilização no auge da modernidade considerada globalizada.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Bernardo. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia da letras, 2016.

_________________. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Portal livros abertos USP. Disponível em: <http://www.livrosabertos.com.br> Acesso em: 14 nov. 2016.

CHAUÍ. Marilena. “Walter Benjamin comentado por Marilena Chauí”. In: Portal a casa de vidro. Disponível em: <https://acasadevidro.com/2013/08/23/walter-benjamin-comentadopor-marilena-chaui> Acesso em: 14 nov. 2016.

Texto original em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/palimpsesto/article/view/34818/24598

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