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Vergonha de viver em dois Brasis, por Mário Lima Jr.


Durante anos trabalhei em alguns bairros da zona sul do Rio de Janeiro e na Barra da Tijuca, residência de ricos, presidentes e milicianos. Depois do expediente, voltava para a minha realidade, São Gonçalo, onde moro desde os sete anos de idade. A princípio o que me incomodava era a decadência gonçalense diante dos canteiros arborizados, das calçadas niveladas e dos lindos hidrantes vermelhos, sempre em bom estado de conservação, vistos nas quadras nobres do Leblon, do Jardim Botânico e em Botafogo. Depois percebi que, além dos diferentes níveis de urbanização entre os lados de lá e de cá, há inúmeros outros contrastes, absolutas injustiças sociais, que atingem principalmente uma determinada cor de pele.


Cheguei ao ponto de desejar que São Gonçalo fosse tão bonita e organizada quanto Ipanema. Há tantos gonçalenses que acordam cedo, enfrentam engarrafamentos no trânsito e servem sofrendo humilhações e ganhando baixos salários no bairro que inspirou canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes que meu desejo não passava de um engano ingênuo. São Gonçalo não pode ser Ipanema porque Ipanema não é boa para São Gonçalo. O bairro prefere não organizar, distribuir, a riqueza que acumula.

Então adquiri um hábito do qual não consigo me livrar, virou vício. Passei a perceber as características físicas e o comportamento de quem serve e de quem é servido nos redutos da elite. Além da zona sul, os modernos prédios comerciais da Avenida Rio Branco e os escritórios de luxo no Centro do Rio de Janeiro. No outro extremo, a acompanhar a quantidade exorbitante de camelôs que sofrem nas calçadas, nas ruas e no cotidiano de São Gonçalo. O volume assustador de pedintes que se espalham nos semáforos, viadutos e estacionamentos da cidade, agravado pela falência do mercado formal de trabalho.

Com a constatação do óbvio, veio a vergonha. O Brasil continua o mesmo lugar retratado por Debret, só que com menos exuberância ambiental. Quem pena e sua sob o sol forte é a pele mais escura. Os ambientes confortáveis, hoje refrigerados por aparelhos de ar-condicionado, são ocupados pelos filhos dos homens que antes estiveram na mesma posição. O país inteiro segue cartilha semelhante.

Finalmente cansei de sentir vergonha. Não posso mais olhar o rosto dos vendedores ambulantes de água em São Gonçalo, que carregam a mercadoria pesada nos ombros nus, e ver que são negros. Desvio o olhar. Como também são negros os porteiros e ascensoristas da Avenida Ataulfo de Paiva, que não raro recebem frieza depois de sorrir e cumprimentar com “Bom dia” aos senhores e senhoras vestidos em traje esporte fino. Não suporto mais o fato de que o problema do Brasil não é incompetência administrativa ou infertilidade econômica, mas falta de respeito pelo próprio brasileiro.


Se a vergonha me cansou, tento imaginar como se sentem as vendedoras de chips para celular que passam o dia de pé nas esquinas, gritando sem parar, concorrendo com os amigos ao lado, e inalando o escapamento dos veículos. Não é difícil adivinhar sua ascendência, sua formação educacional e as condições sem infraestrutura do lugar onde vivem. O Brasil é dividido há séculos. Unir o país exige o reconhecimento de que as partes têm dores e cores bastante diferentes.

Mário Lima Jr. é escritor.


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