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Virou passeio, amigo - por Gregório de Azevedo


Foto meramente ilustrativa
Foto meramente ilustrativa

“Ih, lá vem mais! Olha a bola tocada... Virou passeio!” Era o dia 8 de julho de 2014, jogavam Brasil e Alemanha pela semifinal da Copa do Mundo de Futebol, quando aos 26 minutos do primeiro tempo, o teuto Tony Kroos roubou uma bola de Fernandinho na nossa intermediária, tabelou com o tunisiano Sami Khedira e fez o quarto gol da Alemanha.


Depois disso ainda vieram mais três gols, o Brasil diminuiu, e o jogo acabou em um funesto 7 a 1, eliminando o Brasil da Copa. A seleção brasileira caiu em desgraça, seu manto que tanta alegria nos deu foi usurpado por imbecis e sua bandeira agora orna o canil onde dorme — no cio, sempre no cio — a cadela do fascismo. Mas a frase proferida por Galvão Bueno ainda ecoa na cabeça de cada torcedor, em cada figurinha, em cada meme. Virou passeio, amigo.



Engraçado que 2014 também marca o finalzinho de um período extremamente produtivo na cultura gonçalense, como eu não via há uns 50 anos (sou velho, respeita). A cidade que viu eventos como o Groove do São (Yeah!), Movimento Em Foco e Uma Noite na Taverna; que cantou músicas autorais junto com as bandas no Bar do Blues e no Recreativo, lentamente virava um deserto cultural e assumia a sua vocação de cemitério de sonhos, como sempre diz o poeta Rodrigo Santos (“Ai de ti, São Gonçalo!”). O que tinha sido virou outra coisa.


Vejam bem, não estou aqui dizendo que já foi fácil. Mas a luta coletiva dos artistas da cidade conquistou uma secretaria de cultura e uma fundação de artes. De lá pra cá, a gente perdeu muito mais do que ganhou. Duas prefeituras seguidas, cujo modus operandi de cooptação e incompetência na gestão — cargos divididos a partidos e amigos sem a menor experiência na área, como não dar errado? — fez com que apenas os poucos que se locupletavam conseguissem alguma benesse.



Mas o jogo virou, agora. E, por mais absurdo que possa parecer, conseguiu virar pra pior.


Enquanto realizador de cultura, eu realmente achei que a mobilização em torno da Lei Aldir Blanc, aquela que veio para auxiliar os trabalhadores de cultura (porque cultura não é feita só de artistas) no momento emergencial da pandemia, fosse despertar uma nova consciência de classe, quase um renascimento. Implantar na cidade o conceito de economia criativa, exigir do poder público a valorização objetiva da classe — que vai além dos tapinhas nas costas e elogios, elogios não pagam boleto. Valorizar é realizar editais, é fomentar a cultura, é remunerar decentemente os artistas, é colocar em prática o plano municipal de cultura, que demandou muitas horas e muito suor de muita gente boa.


Mas a biruta virou pra ré. Somados aos desmandos, rachadinhas e “fala com fulano que ele re$olve o seu problema”, a cultura voltou aos tempos do Império, com beija-mão e rapapés. Temos um secretário de cultura que, quando vereador, queria acabar com a secretaria de cultura porque dizia não servir pra nada (tenho pra mim que é tudo um plano secreto do rapaz para provar seu argumento), e que não coordena nada. Agentes das sombras controlam o teatro das marionetes, que riem, dançam, correm — e até brigam, de vez em quando. Regressamos ao ponto zero: uma cultura feita de eventos, e para aqueles que lá vão bater cabeça (uso eufemismos por pura responsabilidade jurídica). Eventos o vento os leva, precisamos de gestão profissional, transparente e que garanta isonomia aos fazedores de cultura. Até onde sei, puxar saco ainda não é Arte.



Não votei no Seu Nélson (que conheci antes das patentes), mas pago o mesmo IPTU de quem votou, e a partir do momento em que foi escolhido pela maioria da população gonçalense, ele passa a ser o prefeito de minha cidade e, como cidadão, é meu dever cobrar. Mas é difícil exigir direitos quando meus pares abrem mão deles em troca de não sei o quê.


A prefeitura alardeia agora um evento, chamado “Viração Cultural”. 24 horas de acontecimentos artísticos em nossa cidade, simultaneamente em quatro palcos: o finado Lavourão, a caliente Loninha Cultural do Jardim Catarina, o Ponto de Ônibus Coberto das Artes e o teatro municipal. “Caramba, Gregório! Você não fica pilhado não? Será esse o renascimento cultural pelo qual você tanto esperava?”


Claro que não, interlocutor inexistente e groselheiro. Serão 200 artistas (e pasmem! Nenhum dançando o Vira!) se apresentando sem nada receberem por isso. Uma chuva de azeitonas na empada de uma gestão obscura e ineficaz. A custo de quê? Não sei. Só sei que, para a prefeitura, é a custo zero. Não é à toa que as ausências na programação falem muito mais alto que as presenças — longe de mim desmerecer o trabalho artístico dos que lá estão. Meu problema é outro.



Como lutar e exigir do poder público alguma coisa, se sempre haverá aqueles dispostos a trabalhar de graça? Gente correndo para exibir sua arte, aprimorada em cursos e ensaios, em troca de pífios “obrigado” e “caramba, você é fera, hein”? Causa espanto que o subsecretário à frente de toda a viração fez parte daqueles que lá atrás lutaram para que nossa cultura fosse respeitada. Os que o viram antes, como eu, não mais o reconhecem. Virou outra coisa.


Como já boiei muito em desespero nesta baía e por muitos anos, rogo-me ao direito de tecer profecias: isto é só mais um começo sombrio. Temo pelos tempos e pelos artistas que virão, já começando a nadar na água podre e com bigornas amarradas nas pernas e braços, para tentar chegar a algum lugar e virarem artistas reconhecidos — isso em uma cidade que não reconhece talentos como Rheinaldo Baso e Simone Santó, hein?


A gestão do Seu Nélson comemorando e vibrando com a viração cultural lembra meu amigo Aristides Resende; o único naquele bar da Lagoinha que comemorou o gol dado pela Alemanha para o Oscar aos 45 do segundo tempo naquele famigerado 8 de julho, achando que o jogo ainda fosse virar. Tem artista na cidade, inclusive, dizendo que esse evento, essa Viração (ainda por cima uma paródia sem criatividade alguma dos viradões culturais pelo Brasilzão afora. Deveria se chamar Vacilão Cultural.) é um marco, e que agora o jogo virou. Virou sim, amigo.


Virou passeio.


Gregório de Azevedo é o fantasma dos saraus passados.

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