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Quarentena, por Rodrigo Santos


- Alexa, que dia é hoje?


O sol entrava musical pela janela escancarada do oitavo andar. O canto dos pássaros era mais forte agora. Aliás, os animais aos poucos vinham se estabelecendo na vacuidade urbana: cachorros de raça ainda com coleira se engalfinhavam com vira-latas caramelo por algum coisa que pudessem comer; sanhaços, tiês e coleiras — outro dia vi mesmo um casal de tucanos! — escreviam novas partituras, cavalos de carga comiam a grama alta dos canteiros dos prédios.


“Bom dia! Hoje é dia vinte e seis de outubro de dois mil e vinte. Feliz aniversário, Rafael!”

Ah, é. Hoje é meu aniversário. Nunca gostei de aniversários, mas ser lembrado por um dispositivo eletrônico me deixou um pouco mais triste. “Obrigado, Alexa”. Responder a uma caixa preta com um display que mostrava a foto da família fez a tristeza descer mais umas duas camadas.


Eles disseram que a quarentena ia durar quinze dias. No dia 14 de março, alguns estados e municípios começaram a fechar as escolas. O exemplo que tínhamos da Itália, cuja demora na reação à pandemia gerou caos social e mortes em massa, acendeu uma luz vermelha. Mas as pessoas….


Bom, o próprio presidente da República disse que era só uma gripe forte, contrariando todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde. Convocou uma manifestação a seu favor e, para o espanto da comunidade internacional (e de todos aqueles que não faziam parte de sua cega seita), o próprio energúmeno foi à manifestação. Apertou mãos, abraçou acólitos, distribuiu perdigotos falando as asnices de sempre. A sensação de falsa segurança — e o egoísmo natural do ser humano, essa besta — fez com que as pessoas “aproveitassem” a quarentena. Praias e bares cheios, gente malhando, gente passeando na rua aleatoriamente, gente contraindo e transmitindo vírus como se fossem modems biológicos.


No dia 17 de março, a primeira morte. Um idoso, cujo quadro evoluiu rapidamente. A comoção do primeiro óbito causado pela doença teve forte impacto na população. Os governadores que ainda não haviam suspendido as aulas o fizeram rapidamente, alguns estados proibiram o acesso a restaurantes, bares, boates, e praias. Aglomerações estavam proibidas, polícia na rua, carros de som. Mas já era tarde.


O começo de abril foi o ápice. A contaminação cresceu exponencialmente, e as pessoas morriam. Morriam às pencas. Os hospitais de campanha, montados de maneira açodada e desesperada, tinham que decidir quem vivia e quem morria. O tecido social estava puído, e pobres e ricos buscavam o mesmo ar que lhes faltava, na falta de respiradores.


Fiz um café e fui para a janela. O carro de som passou, com sua mensagem de que está tudo bem, era só não sair de casa. Eu nem conseguia pensar que estava vivendo no filme do Will Smith, era só melancólico mesmo.


- Alexa, quais as principais notícias?


“Mais uma centena de refugiados abatidos ao tentarem entrar na China-“


- Próxima.


“A queda do governo iraniano potencializou o caos social no Oriente Médio. O preço do barril de petr-“


- Próxima. — assoprei o café e bebi mais um gole.


“O presidente em exercício do Brasil, Rodrigo Mai-“


- Pare.


Eram as mesmas notícias, replicadas por todas as agências. Os repórteres estavam aquartelados em suas redações, disparando mensagens pela internet. A principal emissora de televisão do país desocupara toda a área de entretenimento de seu complexo e estúdios e oferecera como moradia para as famílias dos repórteres. A rede Record, de propriedade do Bispo Macedo, importante líder religioso, demorou a tomar medidas contra a doença — seu líder acreditava que era falta de oração, apenas — e teve que sair do ar. O SBT reprisava Chaves e Pica Pau over and over, sem a menor intervenção humana no ar.


As coisas pioraram mesmo quando morreu a primeira criança. Acreditava-se que a doença só era fatal com idosos e pessoas com problemas respiratórios, mas um menino de 9 anos no Tocantins, sem qualquer histórico de doença pré-existente, falecera com apenas três dias infectado. Já era final de abril, e o governo já havia passado de mão. O presidente e o vice morreram, e o presidente da câmara assumiu até que fosse possível uma nova eleição.


A morte do pequeno Enílson fez com que o governo federal decretasse quarentena absoluta. Acho que nem precisava mais, acredito que a simples visão do caixão branco descendo à cova seria suficiente para arrancar o resto de bom senso das pessoas. Os aventureiros inconsequentes eram presos e jogados em cadeias repletas de cadáveres. Os altos índices de pneumonia e o ambiente insalubre das prisões foi a receita perfeita para o extermino em massa da população carcerária.


Havia ainda quem abandonasse seus idosos. Nas favelas era comum, famílias inteiras fugiam e deixavam avós e avôs pra trás, prometendo voltar. O velho que saía na rua para comprar comida contraía a doença, o que ficava em casa morria de fome. Aí começaram os saques.

Mercados fechados eram violados por turbas famintas atrás do básico: comida e álcool. O álcool em gel já tinha acabado, era o álcool da cachaça que fazia muitos suportarem a demorada permanência na clausura. A cada segunda-feira, o governo dizia estar perto do fim, mas estendia por mais uma semana o confinamento.


As pessoas continuavam a morrer, e o tecido social era apenas um trapo rasgado. Minha mãe morreu sem que eu pudesse vê-la, em junho as fronteiras estaduais já estavam fechadas. O único estado que conseguia resultados melhores era o Paraná, e a força nacional patrulhava suas fronteiras. Só podia entrar que tivesse nascido lá. Cariocas, paulistas, goianos. Crianças nos braços, mochila nas costas, sendo dispersos por gás de pimenta e praticando a contaminação mútua. Os corpos eram arrastados para a beira da estrada, formando covas coletivas que pareciam a Guernica de Picasso.


- Alexa, ligue para a Sônia.


“Ligando para a Sônia…”


Estava tudo bem com ela e com o pequeno Lucas. Eles chegaram na casa de minha sogra no início de julho, graças à naturalidade paranaense de Sônia. Eu não pude ir. Tive que ficar na mesma casa onde vi a minha pequena Ana morrer em meus braços.


Alguns dias passavam mais depressa. Uma vez na semana eu saía de casa para buscar comida. Depois dos saques aos mercados e dos saques às casas, não havia muito mais o que coletar. Os sobreviventes se reuniam em frente à prefeitura para receber cestas básicas. Nem toda semana tinha. E esses eram os dias que passavam mais devagar. Videogame, netflix, livros; nada parecia preencher as horas.


- Alexa, diga-me as horas, por favor.


“Dez horas e vinte e três minutos, Rafael”.


Era a minha única interação, além da ligação diária para Sônia.


Na semana passada não teve cesta básica, nem explicação. Eu já havia vasculhado todos os apartamentos do meu prédio. Coloquei minha roupa de proteção. Luvas cirúrgicas por debaixo de luvas de motoqueiro. Máscaras. Bandana. Capacete. Jaqueta. Meias por cima da calça. Botas. Revólver carregado, e um taco daqueles que Lucas usava pra jogar taco na rua. Mochila. Porque alguns pegaram a doença, e sobreviveram. Podiam estar com a mesma ideia que eu, sem comida. Tem um prédio grande na esquina, dezesseis andares, quatro apartamentos por andar.


- Alexa, enviar a mensagem gravada para Sônia às 17 horas.


“Mensagem programada a ser enviada às 17 horas”.


Eu voltaria antes e cancelaria. Se eu não voltasse antes de 17 horas… Bom, paciência.


Eles disseram que seriam apenas duas semanas.


Já é outubro.

 

Publicado originamente em Medium.

Rodrigo Santos é escritor.






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