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As três Marias - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Divulgação/O São Gonçalo
Foto: Divulgação/O São Gonçalo

De Lourdes estava radiante, era casamento de sua única filha, professora, linda, a única da família a cursar uma faculdade estava se casando com um amigo de infância, rapaz educado, bem formado, empregado numa multinacional. Iam se casar e morar fora do país. A família enorme reunida na igreja de Nossa Senhora das Graças, luzes, flores, muitos flashes e filmagens, parecia final de novela.


Após o casamento a recepção num grande salão, muita bebida, comida, convidados ilustres, música e muita alegria. Quando os noivos estavam se despedindo para a lua de mel a choradeira foi geral. De Lourdes, que criara a filha com sacrifício, lavando roupas ou trabalhando como diarista, fez das mãos o coração para que nada faltasse à filha, era só lágrimas e agradecimento por aquele momento tão significante em sua vida. O carro parte, a festa acaba e De Lourdes chega à sua casa, tira os sapatos e espreguiça feliz...


Da Glória era outra Maria feliz. Depois de vários desencontros amorosos, depois de tanto sofrer por amores não correspondidos encontra o homem de sua vida, os olhos dele quando encontravam com os dela pareciam fundirem-se, eram uma mistura de música com dança, flores, lençóis... A paixão explodindo em todos os cantos da casa, os passeios na praça com pipocas e churros, a caminhada a beira mar com longos e deliciosos beijos sentados na areia à luz da lua, um jantar a dois, sussurros, gritos, um longo e gostoso gemido, um trançar de pernas e os misturados olhos fechando-se enquanto os corpos se aninhavam em concha aguardando um novo dia para tudo começar de novo...



Do Socorro precisou ser amparada pelo marido de tanta emoção quando a filha mais velha recebeu o diploma de formatura de bacharel em direito. Anos de luta, dedicação, dinheiro curto, mas bem aplicado, conseguiram ter aquela vitória, e outras viriam, pois a do meio já cursava jornalismo e a caçula estava terminando o segundo grau.


A vida não podia ser mais generosa. A filha prometera trabalhar duro, comprar uma bela casa para mudarem-se daquele bairro para um lugar mais bem localizado, mais digno de vida. Do Socorro dizia que dali não sairia, ali criou as filhas, ali viu a vitória chegar e dali não arredaria o pé.


Tinha o amor de sua vida perto, o dinheiro curto, mas controlado, jamais passaram necessidade. O esforço e o sacrifício foram grandes, mas valeu a pena. Depois do baile de formatura tudo o que Do Socorro queria era esticar as pernas em sua cama aconchegada no peito de seu amor revendo em pensamento todos os acontecimentos daquele lindo dia até os olhos cansarem e irem se apagando como o sol por detrás da igreja matriz...


Em frente ao pronto-socorro central de São Gonçalo do Amarantes, De Lourdes, deitada sob a marquise de uma farmácia, acorda com alguém lhe afagando os cabelos lhe oferecendo uma marmita como jantar, ela pensa em recusar, mas lembra de que não comeu nada o dia todo, só fumou crack e bebeu, então decide aceitar...



Um pouco à frente, sob a marquise de uma distribuidora de cosméticos, Da Glória é despertada da mesma forma. A maconha dá uma fome danada e a cachaça barata deixa um gosto ruim na boca, aquela comida viria a calhar, além do mais era bem gostosa...


Do Socorro não dormiu, velava as três filhas que dormiam num colchão de papelão sob a marquise de outra farmácia, quase em frente da Igreja Matriz, enquanto o marido percorria as ruas catando material reciclável para conseguir algum alimento para a família. Ela não comeu, deu a comida para as crianças e guardou uma marmita para dividir com o marido quando ele chegasse, o perigo é constante e vem de todos os lados. “É preciso estar atento e forte...!”


Do outro lado da rua, na calçada da Casa das Artes, três rapazes preparam suas camas para dormirem, todos jantam as marmitas oferecidas por estes anjos que passam todas as noites alimentando e confortando esses irmãos que nada tem além da rua para andar e o céu como cobertor. Bebem, fumam maconha e crack, jogam baralho apostando cigarros ou alguns tostões até os corpos pedirem um tempo para se recomporem...


As Marias voltam para os casamentos, para seus amores, para as formaturas...


O sol vai cochichando poesias nos ouvidos da Ilha do Pontal, devagarzinho se aproximando e se acochando num sono feliz enciumando a lua que se enfeita no espelho do mar subindo terra acima para iluminar os sonhos daqueles e daquelas que nada esperam da realidade. Lá do alto da torre da Igreja Matriz, São Gonçalo dedilha uma sinfonia silenciosa rogando a Deus que zele por nossos irmãos.


Eu vi este dia, eu vivi este dia, eu passei a tarde chorando e vou dormir da mesma forma...


Ah meu São Gonçalo! Protegei os filhos de sua terra...!

 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.




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