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O demônio do Gradim - por Erick Bernardes


Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Haverá o dia em que os seres viverão em harmonia. Mas não nos parece uma realidade ainda, de jeito nenhum, nem era assim naquele tempo, pois a maldade humana mostrou seu lado mais cruel.


O caso aconteceu num lugar chamado Areal, para os lados do Gradim, pertinho de onde existiu um matadouro produtor de carnes bovinas e couros crus, o famoso curtume de SG. Pois é, lá que a crueldade aconteceu.


Foi num descampado margeado pela vegetação rica em aroeiras, pitangas e sementes de capim capazes de atrair inúmeros passarinhos. Pelo chão do Areal, abundavam carcaças de gado abatido no tal matadouro gonçalense. Sinistro, aspecto sombrio, ambiente pesado. Seriam cenas bastante similares às do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, se a geografia não fosse às margens da Baía de Guanabara. Exatamente, paisagem de ossada bovina pincelando de branco o ocre do chão e as partes verdejantes do entorno.


Os dois meninos que residiam ali pertinho armaram alçapão e aguardaram escondidos na macega. Tinha espécies como tiê-sangue, azulão, coleiro, saíra, sanhaço... e esses interessavam.


_ Caiu, Josué, caiu o passarinho na armadilha.



Ninico correu até o alçapão e se decepcionou, pois não se tratava do passarinho esperado. De modo algum aquele animal tinha valor comercial e, atraído pela canjiquinha jogada no fundo falso de madeira, a pobre rolinha silvestre se viu em cativeiro.


_ Ai, que raiva, bicho enxerido, que ódio, por que esse troço tinha outra vez de cair aqui?

Josué nem bem havia alcançado os doze anos de idade e já demonstrava senso crítico, ao se deparar com o comportamento agressivo de Ninico.


_ Pra quê tanta irritação, hein?


_ Essas pragas de rolinhas atrapalham a captura dos tiês que quero pegar pra vender.


Mas o pior ainda chegaria. Exatamente, imagine só. Assim que Ninico tirou o já assustado passarinho do alçapão, a sessão de crueldade começou a acontecer. Infelicidade lembrar disso. Verdade. Impossível não se incomodar. O fato é que a sequência cruel começou quando aquela miniatura de demônio catucou com uma vareta longa a toca de um formigueiro de saúvas. Isso mesmo, na sequência ele enfiou o passarinho no buraco e tampou a entrada com uma pedra. Pronto, meu Deus, que coisa horrível! Josué ficou apavorado. Por qual motivo o coleguinha cometeu aquela atrocidade? Dez minutos depois, o diabo em forma de criança retirou a rolinha do ninho de formigas. O pássaro agonizava, mas estava vivo, exatamente, queria viver. E o leitor acha que as maldades findaram aí? De jeito nenhum. O caso é que, tão logo Ninico viu que o animal não havia morrido com as picadas das formigas, resolveu furar os olhos do passarinho. Juro, caro leitor, atravessou uma vareta enorme pelos globos oculares da rolinha e soltou a pobre coitada pra morrer no mato. Josué havia saído correndo, assustado. E o passarinho se esvaiu em sangue entre os arbustos. Como acreditar em ação tão desumana?


Mas a vida cobra as atitudes dos seres, claro que cobra. Lei do retorno, reflexo do que se faz em vida, impossível não reconhecer.


Bem, a questão é que, anos depois, o menino (agora já adulto) Josué soube por um vizinho que o sádico Ninico, já beirando seus vinte e cinco anos de idade, ficou cego dos dois olhos de uma hora para outra, sem nem bem se conhecer o motivo. Médico algum descobriu a causa. Só se soube que o mundo se tornou nublado para o ex-caçador de passarinhos. Sim, de fato um fim trágico. O universo acinzentou suas retinas. Teve gente com pena do colega de infância, mas não houve jeito: a luz do mundo nunca mais permitiu ao jovem enxergar.


Fonte da imagem: https://br.images.search.yahoo.com

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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