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Caneta azul ou a saga de um cronista do Lindo Parque, por Erick Bernardes


Foto: Pixabay
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Estava reparando no nível de tinta da caneta guardada no meu estojo. Exato. Quatro meses e parecia novinha em folha a canetinha de plástico transparente comprada outrora. Economia proposital de uso do objeto? Nada disso. O certo é que depois de ter tomado gosto por escrever direto no computador, a carga da caneta passou a durar muito mais tempo. Uma eternidade para acabar o fluído escuro. Pensei: por que não escrever hoje uma crônica em tinta azul direto no papel de caderno, só para não perder a prática da caligrafia convencional? Desafio de mim para mim, exatamente, eu mesmo me lançando à tarefa da produção textual de escrita tradicional.



A tinta não se esgotou pelo uso, teria durado bastante, todavia me lembrei que aquele líquido de nanquim azulado estava ressecado, coagulado, seco, sequinho da Silva, de tanto tempo guardado ali sem usar. Não produziria traço algum. Mas eu precisava escrever, o meu autodesafio exigia produção no domingo. Crônica sobre São Gonçalo, precisava nascer, o leitor merece. Sempre merece. Necessário então correr à rua, entrar na padaria de manhã (padarias no Lindo Parque, em SG, vendem de tudo) e pedir uma dessas canetas mais baratas que há.



A mente já trabalhava na narrativa, a caligrafia é que ainda não. Paguei no balcão o instrumento de tinta nova e mais dois lápis 6B, estes para guardar na gaveta. Aquela escrita ávida por nascer continha já o germe de coisa grande e importante, e cada futura gota do pequeno objeto caligráfico novo haveria de ser produzida. Uma história carecia do papel, palavras eufóricas por surgirem aspiravam às margens da página de celulose de um caderno espiralado. No caminho de casa o troco caiu no chão, sim, caiu, a moeda de cinquenta centavos rolou pelo barranco e bateu no pé do viciado em maconha que passou a noite em claro sentado na pedra no canto da rua. Ele sorriu e fez gesto de pidão, necessário deixar pra lá a moeda, deixei pra lá.



Continuei o caminho, a maratona de retorno ao lar no intuito de produzir o tal texto dominical continuou. O gato velho de um vizinho também velho cruzou a rua. Gato preto, sempre a atravessar meu caminho, entretanto, nada de crendices populares. Abri o portão de casa, "que bom, cheguei. Pronto, bora escrever. A mesa me aguarda". E eis que nasce a crônica de hoje, na cor azul, não fala nada de SG, mas sobre um domingo típico na manhã de um cronista de jornal.

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.




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