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Pororoca de esperanças



43 minutos do segundo tempo, a audiência roendo as cutículas pelo acréscimo que subirá na placa do auxiliar. Era a primeira vez que o Gonçalense chegaria à elite do futebol, repetindo o feito do ano anterior e vencendo o campeonato estadual de sua divisão. Como no campeonato passado, um empate daria o título ao Tricolor Metropolitano, dada a vantagem adquirida no primeiro jogo da decisão.

Em Santa Luzia, Dona Miranda arrastava seus 68 anos pelas ruas de terra até a igreja. Iria agradecer ao Senhor por finalmente seu filho ter arrumado um emprego. Após dois anos limpo das drogas, pela primeira vez não temia que ele retornasse ao mundo cão que o absorvera desde que saíra da escola. Foram 20 anos nessa vida, até que um dia, ainda na carceragem, ele envolveu suas mãos e disse: “Mãe, vou parar”. Parar tinha sido o mais fácil. Dito ainda era visto como marginal – também, falava e andava como um (“te apruma, menino”)! Mas ele foi mais forte que isso, e no dia seguinte iria levar a carteira de trabalho para assinar.

44 minutos, falta na intermediária, contra o Gonçalense. Foram segundos seculares entre a batida seca de Zoca e o toque com a ponta dos dedos do pequeno gigante Julio, permitindo novamente que o ar invadisse os pulmões da apaixonada torcida. O escanteio malogrado garantiu o alívio momentâneo, e agora a espera era pelo tempo de acréscimo.

No Jardim Califórnia, Cláudio acordara com uma sensação boa. Depois de três meses naquela casa vazia, sentia-se leve, sem saber o porquê. Selma havia levado a televisão, a geladeira e as crianças, e junto com isso tudo seu sorriso, deixando pra trás contas, uma bigorna em seu peito e um cachorro vira-latas. Mas hoje a manhã parecia ter outra textura, outra cor. Decidiu abrir mão do álcool e beber somente daquele domingo, com acenos simpáticos e palavras doces vindas de estranhos. Talvez tudo desse certo – pensou – e talvez Selma entre por aquela porta dizendo que me ama, e a mais nova me peça colo. Sorriu com a ideia, e tentou não pensar nisso no resto do dia, entre o futebol e a capina. E quando tomava o café na varanda, olhando a rua, viu sua família cruzar a esquina de malas e braços.

45 minutos, A placa levantou 3 minutos de acréscimo, e parecia que chegaria a Copa de 2018 antes que o apito soprasse pela última vez. O Gonçalense recuava, se defendia como podia, e a sorte agora estava ao vento como uma telha de amianto na tempestade do Vila Lage.

No Arsenal, Seu Chico beijava o bilhete da Federal. Tinha que ser dessa vez, 52 anos batendo na trave, precisava do dinheiro agora mais do que nunca. Se acostumara à pobreza, à viagem diária de 4 horas de trajeto para o trabalho, à cerveja mais barata – conquanto que estivesse gelada. Só não se acostumara à dor contínua em seu quadril, e não se acostumaria nunca à cadeira de rodas. Precisava fazer aquela bateria de exames, precisava da operação, do implante, e para isso tudo precisaria de dinheiro. Mas esse bilhete da Cabra veio em sonho, vasculhou por todo o Alcântara atrás dessa milhar. Tinha certeza de que o rádio anunciaria o resultado favorável, nunca estivera tão convicto disso. E beijou novamente o bilhete.

Aos 46, Sabão tabelou com Bernardo em uma bola zerada lá de trás por Rodrigão. Bernardo costurou o zagueiro e quando todos – com o coração nas cutículas - esperavam que ele desse mais um drible, bateu cruzado, selando a vitória do Gonçalense. Os dois minutos de desconto que restavam agora eram apenas um detalhe incômodo, e a torcida gritava é campeão. Em Santa Luzia, Monjolos, Zumbi, Coelho, no Pita; no Jardim Califórnia e no Arsenal, Colubandê e Jardim Catarina, todos éramos campeões. Seu Chico, Cláudio, Selma, as crianças, Benedito, Dona Miranda, todos estavam representados ali, na glória não apenas do trabalho de uma vida, mas na coroação da esperança.

Porque o futebol é uma pororoca de esperanças.

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