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Coisas da pandemia lll: até que se fosse verdade, por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Quinta-feira à noite depois do trabalho me entreguei ao inevitável chopinho. Conversa vai, conversa vem e já estava no décimo. Senti a cabeça meio pesada, o corpo não obedecia com tanta destreza às ordens do cérebro. Pensei estar já bêbado, mas só com dez chopinhos? Achei que era o tal de estresse. Levantei-me da mesa onde alguns amigos batucavam um samba do Paulinho, podia ser meu, eu também sou Paulinho. Mas aquele era o da Viola, fui até ao banheiro lavar o rosto pra ver se melhorava, olhei-me no espelho e vi o quanto o tempo tinha me deixado marcas, aquele rosto liso e simpático de outrora dera lugar a uma cara cheia de pelos encravados, rugas de problemas mal resolvidos, dentes amarelos pela nicotina, entradas laterais nos cabelos já se acentuando e um olhar triste. Aceito tudo, até as rugas, mas tristeza é coisa de quem cede à vez.


A única coisa grátis que temos é ter alegria simplesmente por estar vivo, com saúde para o trabalho e com um dinheirinho para ficar algumas horas com os amigos jogando conversa fora e justo neste momento me vejo com olhar triste. Leva a mal não. Xô tristeza! Coisa de bêbado! Quando já me preparava para sair senti o corpo mais pesado que o habitual, os olhos embaçando, as pernas bambeando, já caí apagado...


Acordei num lugar estranho, um hospital com uma claridade muito forte, deitado numa cama de lençóis brancos, um quarto com janelas enormes e um silêncio absoluto. Estava fraco, muito fraco, não conseguia me levantar. A porta foi se abrindo lentamente e surgiu um homem branco, num terno de linho, gravata preta da cor dos sapatos, um olhar doce e sereno. Aproximou-se afagou minha cabeça e perguntou como eu estava me sentindo. Respondi que estava muito cansado, queria me levantar, ir para minha casa, minha família deveria estar preocupada comigo e perguntei quem era ele e onde eu estava. Ele me respondeu que o cansaço era natural, não demoraria e eu estaria novinho em folha, quanto a sua identidade, mais tarde, eu certamente lembraria e do mesmo jeito que chegou saiu...


Quando mais tarde reuni forças para me levantar ouvi música vinda do lado de fora, cheguei à janela e vi uma roda de pessoas com violões, pandeiros e outros instrumentos, fixei bem a vista e fui reconhecendo um por um. O tal cara de branco que vi primeiro estava lá, era Noel Rosa ladeado por Ari Barroso, Pixinguinha, Heitor dos prazeres, Manacéia, Mano Décio da Viola, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, João Nogueira, Clara Nunes, Elis Regina, Cartola, Cláudio Camunguelo, Donga, Sinhô, ih! Até Nier Ribeiro estava lá! E tantos outros sambistas que já partiram cantando e tocando músicas lindas que eu nunca ouvira. Num banco, sentado um pouco afastado um homem tinha nas mãos um copo com uísque e um cigarro aceso e discutia asperamente com outro que em sua cadeira de rodas marcava o ritmo na palma das mãos. Eram nada mais nada menos que Vinícius de Moraes e Candeia compondo uma inédita parceria.


Novamente minha vista escureceu e como num passe de mágica acordei em minha cama, não sobressaltado, estava sereno e feliz. Tive um lindo sonho.


Quando a cada manhã vejo e recebo notícias de tantas pessoas nos deixando, fico triste, mas logo esqueço a tristeza, pois sei que dormiram e vão acordar numa roda de samba daquelas, longe da dor, do sofrimento, da demagogia, da traição, das pessoas que não dão valor a arte alheia, um lugar onde as pessoas se respeitam e se alimentam da alegria de fazer parte de um todo. Elas vão fazer uma falta danada aqui, mas certamente, a esta hora deve estar uma alegria danada lá ao vê-las chegar... Vivas à vida! As daqui e as de lá !!!!!!!!!

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.



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