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O amargo da língua em solo gonçalense - por Erick Bernardes


 Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital psiquiátrico (1919)/Foto: In Revista Serrote
Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital psiquiátrico (1919)/Foto: In Revista Serrote

“De todas as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente”

– Lima Barreto


Quando estiver de mau humor e ânimo ruim, procure fazer uma caminhada ou mesmo ponha a cara na janela no intuito de encher o pulmão de ar. Bem, confesso ser este começo um quase parágrafo de autoajuda, reconheço, impossível não admitir. Mas a intenção é saudável, trata-se da minha tentativa de precaver o leitor do mesmo amargor de espírito que acometeu o escritor Lima Barreto quando esteve no município de São Gonçalo.


Certa vez, o autor do romance Triste fim de Policarpo Quaresma enveredou por nossa cidade. Pois é, para o bom leitor, o título do referido romance já basta. Triste, chateado, Lima Barreto se mostrou tristonho ou aborrecido quando passou por aqui. A ligação do escritor amargurado com SG se explica por causa da história de sofrimento dos seus ancestrais.


De acordo com o jornalista Jorge Nunes, embora Lima Barreto tenha nascido no Rio de Janeiro, a avó dele, de nome Geraldina, "era escrava na Fazenda Colubandê e considerada 'cria' da família Pereira Carvalho, então proprietária daquelas terras (em São Gonçalo), até a década de 1840, quando as vendeu e mudou-se para a Corte" (NUNES, s/p/, 2017). Com essa informação, já se intui ter o angustiado escritor ido atrás de informações acerca da própria ancestralidade.


Há de se ressaltar que o embarque para SG se deu inicialmente no Largo do Passo: "fazia uma manhã quente e feia, ensombrada de nuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos. Soberbamente insuportável. Indagando da produção do município, não me soube informar com simplicidade" (BARRETO, p. 57, 1908).


Nota-se no decorrer da narrativa um tipo de arroubo nada estilístico, mas bastante revelador da alma do artista e do contexto geográfico. E continua: "As Neves (o bairro de Neves) não tiveram, para os meus olhos, nada de notável. Casas baixas, pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas – tristes, de longos olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes, fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia" (Idem ).


Indiscutível a importância do relato para além do fel revelado pela linguagem literária ou verdadeira constatação pessoal do derredor papa-goiabas. Talvez hoje, se estivesse vivo, contemplando aquelas velhas e toscas alamedas de outrora, atualmente pintadas com grafites coloridos e ecológicos, Lima Barreto também não se permitiria enganar com as ruas dos centros impermeadas por asfaltos recentes e evitasse edulcorar a alma, por causa de um ou outro Shopping Center erigido sobre as praças públicas da cidade – e chamariam a ele de louco, provavelmente. Pois é, e viva a literatura, que não nos deixa perder de vistas o senso das coisas.


Referências:

BARRETO, Lima. Diário íntimo de Lima Barreto (1908). Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2078



Fonte da foto: https://www.revistaserrote.com.br/2016/01/o-lima-barreto-que-nos-olha-beatriz-resende/ Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital psiquiátrico (1919)

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.




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