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Raízes africanas no bairro Gebara - por Erick Bernardes


Fonte da foto: Pixabay
Fonte da foto: Pixabay

O relógio marcava pouco mais que três da tarde, o sol inclemente de dezembro, últimas aulas do ano. Graças a Deus. Em breve férias.


Pelo arroubo discursivo acima já deu para o leitor notar: se trata de um professor a narrar essa história. Exatamente, um professor de literatura lecionando em Itaboraí e morando em São Gonçalo.


Sempre que posso, fixo o pensamento em algum ponto das ruas e me ponho a cogitar a história do lugar. Como teria surgido esse logradouro? Haveria sido uma fazenda? Pois é, gosto de pesquisar o passado das localidades. No entanto, naquele dia uma mudança de curso no itinerário do ônibus aconteceu. Olhei pela janela:


— Moça, moça, aqui é SG ou Itaboraí ainda?


— Bem, meu filho, aqui é um e é outro, trata-se dos dois municípios.


Incrível o poder da dúvida, não reconheci a estrada, fui tomado pelo nervosismo. Porém, a passageira de meia idade e jeito sabido informou que o motorista mudara de estrada devido ao acidente na pista. Um caminhão capotou e engarrafou tudo. Necessário ao condutor buscar outra rua. Estávamos no Gebara, ainda bem, passei um susto danado. Daí o trânsito fluiu.


— Obrigado, senhora.


— Senhora tá no céu, prazer, meu nome é Matildes.



Gebara é um bairro bimunicipal ligando São Gonçalo a Itaboraí. Encravado entre Guaxindiba, Marambaia e Aldeia da Prata, uma das suas extremidades faz limite com parte da estrada BR 101, no ponto exato onde se situa a praça de pedágio da Autopista Fluminense. Segundo a dona Matildes, ela nasceu e passou a juventude no Gebara. Fez amizades. Fortes lembranças dos centros de Umbanda e Candomblé que lá frequentou, até se casar e ir morar no Vila Três. E então continuou:


— A ancestralidade ainda é muito presente no Gebara. As famílias preservam a cultura de origem africana. A culinária também guarda nossa tradição. Quando eu era criança, minha avó contava, ao redor do fogão de lenha, que nossos ancestrais vieram da Guiné-Bissau e serviram como escravizados nos engenhos de açúcar do Maranhão. Tão logo a alforria se deu, esses antepassados e mais um grupo enorme de ex-escravizados vieram pra cá trabalhar na lavoura e nas olarias.


Bem, infelizmente a viagem passou como flash. Descemos em Alcântara. Que pena, estava gostando da conversa. Assunto interessante. Agradecimento à dona Matildes e tchau sincero. Mas você sabe como é cabeça de cronista, não é? Impossível abandonar a narrativa. Tentar esquecer a conversa no ônibus não dá.


Assim que cheguei em casa, abri o computador no Googlemaps e... pasme, o site indicava, entre o Gebara e os bairros vizinhos, a maior concentração por metro quadrado de centros religiosos de matriz africana que já vi: Tenda espírita pai José e Caboclo Pena Dourada, Ilê asé Ode Omi, Ilê ase ti osum Yemonja, Axé Tawadey, Ilê Ase O Ju T Nora II, Ilê ase Ajagunmàle, Casa de Oxoce, Casa Caboclo 7 Flexas, dentre outros.



Dona Matildes estava certa, lugar incrível de cultura, rico em história. Mais embasbacado eu fiquei ao pesquisar a origem do nome do bairro. De acordo com o artigo acadêmico "Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800)", de Reinaldo dos Santos Barroso Júnior, houve mesmo esse itinerário náutico, de Guiné-Bissau ao Maranhão, e que se encaixa perfeitamente na história sobre os primeiros habitantes do Gebara.


Conforme o artigo, "nos termos de visita existentes na câmara do município de São Luís do Maranhão, entre os anos de 1790 até 1795 (...), constam a entrada de 7539 escravos, destes 4670 vieram dos portos de Cacheu e Bissau, correspondendo a 61,9% dos africanos que ingressaram no território maranhense. Estes dois portos estavam no litoral da Alta-Guiné, na embocadura dos rios de Cacheu e Geba respectivamente" (BARROSO JR., 2009).


Pois bem, das duas uma: ou o topônimo se trata de alguma homenagem a figurão importante de sobrenome Gebara, proveniente da Espanha ou Portugal, ou se originou por um tipo de atividades dos pescadores do Rio Geba em Guiné-Bissau (Geba-ara = trabalhadores do Geba, na língua crioula); os mesmos pescadores antepassados dos que viveram como escravizados no Maranhão e depois moraram entre Itaboraí e São Gonçalo.



Incrível o poder da narrativa oral, não é mesmo? Embora seja a crônica o fruto de uma simples conversa de ônibus, fica a dica: puxe a pontinha desse fio histórico, consulte as referências e experimente algumas surpresas.


Referências:

BARROSO JR. Reinaldo dos Santos. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800), 2009.


CUDANGO, Elisabete Djenara. A historiografia da escravidão a Guiné portuguesa: de Porto de Cacheu para São Luis-Maranhão nos séculos XVIII-XX. 2018. 28f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Humanidades) - Instituto de Humanidades e Letras, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, 2018.

Disponível em: repositorio.unilab.edu.br/jspui/handle/123456789/2238 Acesso em: 30 de jan 2022

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.





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