top of page

O gato podre do Lindo Parque - por Erick Bernardes


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Muitas vezes nos perguntamos por que algumas lendas existem e sobrevivem há séculos. Uns duvidam até certo ponto, outros afirmam categoricamente que a língua do povo ecoa profecias divinas. Não sei ao certo, confesso que tenho cá certas manias também. Uma dessas minhas cismas é a de acreditar que os gatos possuem as sete vidas típicas da crendice popular. Quem não põe fé em alguma superstição ou outra, por acaso? Qual cidadão nunca fez suas preces rápidas por causa de premonições estranhas? Pois é, desnecessário emitir julgamento. Fica a sensação esquisita no ar. Principalmente porque esses animais costumam nos encarar de frente; olhos nos olhos; coisa de arrepiar.



Certa vez, no meio da rua onde moro, no bairro Lindo Parque, deparei com um gato siamês extremamente adoentado. Sim, avistei um bichano de raça, usando coleira e tudo, porém abandonado, com certeza estava morrendo. Olhando bem, notei que uma das patas traseiras se encontrava em estado avançado de decomposição. Verdade. Um fedor danado só de passar perto. Eu via até parte do osso do membro infectado e repleto de larvas de moscas que começavam a roer o quadril. Ferimento nojento, talvez fosse resultado de alguma mordida de cachorro bravo. Absurdo! Cadê o dono do animal nessas horas que não faz curativos? Coitado do felino.



Se os gatos têm mesmo as sete vidas tantas vezes apregoada, certamente uma dessas vivências já estaria se esvaindo. Duvidava se o bicho sobreviveria ao apodrecimento do corpo daquele jeito. Sentia o estômago embrulhar, verdade. Durante três dias eu vi o gato bem no mesmo lugar, fedendo, decompondo-se aos poucos naquele calor intenso. Revoavam-lhe as moscas verdes brilhosas, enquanto ele se encontrava deitado na rua, junto ao poste que servia de apoio à placa do lava-jato que havia lá na esquina.


Depois disso o bichano desapareceu, evaporou-se das redondezas — talvez tenha morrido, caso contrário continuaria exalando mal cheiro por lá. Impossível resistir à carcomida das larvas de insetos no corpo magro. Bem, passados sete dias exatos (juro a você leitor, não é conta de mentiroso), o semblante com o olhar vitrificado do gato não se apagava da lembrança. Ahh! Aquele mirar de varar a alma! Sensação de agouro, sete dias, melhor seria esquecer o azul translúcido das pupilas felinas. Mas não, infelizmente não havia como apagar da mente.



Ao chegar do trabalho, já pelas onze da noite, qual não foi a minha surpresa! Sim, pasmem, o gato bem ali a me encarar, me olhando fixamente. E pior, o diabo do bicho estava na cozinha, deitado na enorme panela de purê de batata que a minha esposa deixara com carinho antes de viajar. Imundice. Ainda bem que ela viajara logo, com certeza passaria mal. Havia secreção de membros podres manchando o chão. Que porcaria! Vontade de vomitar com aquele cheiro grosso de carniça. Cruzes! Todo lambuzado de purê, certamente comeu tudo, nem enxerguei direito. O cheiro do leite ou da manteiga usado no amolecimento da batata deve tê-lo atraído. Mas como? Ele devia estar morto. O fogão era só manchas escuras de sangue pisado. Sujeira vermelha e pegajosa. Do outro lado grãos semelhantes a arroz se mexiam aos montes sobre as bordas da panela. Mas não, em hipótese alguma eram de comida aqueles pontos brancos a retorcerem tanto, coisa mais asquerosa: eram larvas de insetos bailando saciadas. Ojeriza. A saliva engrossou na minha boca, senti odor de morte arder o nó do nariz e o gato diabólico me encarou de frente. Eu fiquei petrificado, se não fosse meu instinto de defesa, bem provável que teria desmaiado ali ao pé da pia. Os olhos do animal em vias de decomposição não apresentavam mais aqueles cristalinos. Não aparentava estar vivo aquele troço ruim. Mostrava-se calmo ao me encarar com os bugalhos baços. Do purê só restaram as raspas na panela repleta de pelos cinzentos grudados. Tonteei de entorpecimento. Entretanto, três segundos foram suficientes para eu pegar o soquete de aço e sentar no demônio meia dúzia de pancadas fortes. Resultado? Quer saber o que aconteceu? O gato fugiu. Sim. Pois é, mesmo se decompondo o felino conseguiu correr.


Não era de outro mundo o bichano, certamente restava alguma vida das sete que teve. O inferno foi ter que lavar a casa e o fogão com água sanitária depois de jogar a panela fora. E o purê? Nunca mais caiu bem no estômago esse tipo de alimento mole.

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.



POLÍTICA

KOTIDIANO

CULTURA

TENDÊNCIAS
& DEBATES

telegram cor.png
bottom of page