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Praia da Beira e o mangue das calcinhas, por Erick Bernardes


Imagem: Internet
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Quero ver se você sabe apontar lugar onde mitos e lendas resistem às explicações lógicas das coisas, conforme acontece em São Gonçalo. Duvido que você consiga me mostrar outro município assim. Imagine, o cidadão faz doutorado em Biologia Marinha, torna-se referência em assuntos insulares, embrenha-se no mangue da Guanabara no intuito de coletar informações acerca do ecossistema local e se vê diante de um acontecimento incomum: dúzias e mais dúzias de calcinhas dependuradas nos arbustos do manguezal gonçalense. Exatamente, pasme, o mistério das lingeries nos paus retorcidos na faixa arenosa que liga a Praia da Beira à da Luz.


Certa vez, um amigo e consultor para assuntos de ciências naturais lembrou que, há décadas, liderou um projeto de conservação da Praia da Beira ligado à extremidade da Praia da Luz. Isso mesmo, bem perto do Pier do Comperj, nome de uma quase ruína recente dos tempos áureos do falso desenvolvimento econômico do petróleo. Pois é, mas o caso já começa esquisito. Segundo ele, o mangue não tem lama alguma. Mas como haver manguezal sem o choc-choc dos pés afundando no charco donde lhe é característico? Não sei, confesso ter me deparado nesse ponto com mais uma das minhas ignorâncias. A questão é que existe sim e se constitui sobremaneira de areia soltinha. Os arbustos nomeados paus-de-mangue ostentam, vez ou outra, roupas íntimas femininas quando a maré vazante do manguezal tende a alterar suas orlas. Verdade, referem-na por "franja arenosa", espaço servido inúmeras vezes de laboratório a céu aberto para alunos e professores da universidade onde meu amigo lecionou - e foi lá que o constrangimento se fez presente, diante do fenômeno provocador.


O caso se passou pela primeira vez desse jeito. Quatorze estudantes da faculdade local empenhavam seus esforços no mapeamento da flora da "franja de areia da Beira". Porém, surpresa coletiva, desarranjo psicológico: uma cena que, se não for considerada excêntrica, carrega no mínimo sua carga de erotismo e fantasia. Certo é que, tão logo a turma da graduação chegou ansiosa, a natureza fez questão de revelar o seu lado democrático. Verdade, visão inacreditável. Vislumbrou-se o fenômeno das calcinhas nos galhos das árvores. Ou melhor, deslumbraram-se os alunos. Sim, lingeries de todas as cores e tamanhos expostas ali na frente como se fizessem parte do bioma local. Das mais miúdas, do tipo tamanho cabível em boneca Barbie, até daquelas que funcionariam bem como capa ornamental de botijão de gás. Incrível como o mangue da Beira provocou desconfortos. Como explicar tamanha excentricidade assim? Bem, o caso virou piada e quase lenda na faculdade local. Mas ninguém quis de fato decifrar o tal enigma gonçalense.


Outra situação similar se deu quando esse mesmo biólogo se lançou na pesquisa acerca dos caranguejos uçás. Exato, para quem não sabe, esses são os nomes dos crustáceos mais populares e que, tradicionalmente, configuram cardápio nos bares e biroscas do entorno da Guanabara. O fato é que para dar ensejo à pesquisa na Praia da Beira, nosso personagem buscou importante aliado. Sim, perfeito e lógico raciocínio. Necessário buscar apoio na comunidade mais próxima. Nada mais conveniente do que mostrar ao padre local a necessidade de investimentos na região. E lá se foram os dois: padre e pesquisador, a mais perfeita sincronia entre ciência e mistérios da fé.


É, meu caro leitor, mas quem disse que esses homens ofereceram respostas? Incrível como as pessoas têm mesmo suas fragilidades investigativas. Nem um nem outro decifrou o enigma das calcinhas servindo de bandeirolas penduradas na vegetação, como se fossem frutos do pecado proibido. “Mas, padre, isso não pode ser resultado de orgias e bacanais contemporâneos. São muitas lingeries espalhadas. E essa cena só se revela quando a maré baixa acontece”, declarou enfático nosso professor de biologia.


O padre se mostrou descrente também. Quem poderia oferecer certezas? Mas o caso não se resolveu. Sacrilégio científico, natureza indecifrável, quando nem o clérigo nem o naturalista dão conta do fato. Seria alma penada do falecido cantor Wando a praticar traquinagens? Não sei, confesso ignorância quanto ao assunto. Até hoje a cena se desenha ao visitante da Praia da Beira. Aqui mesmo, na cidade de São Gonçalo. Mistério.

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.








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