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Uma confusão no ônibus Rio Ouro - por Erick Bernardes


Fonte da foto: https://onibusbrasil.com/eliezerferr/3518713
Fonte da foto: https://onibusbrasil.com/eliezerferr/3518713

A passarela ficava ao lado da empresa na qual trabalhavam, mas apesar da segurança que conferia aos seus passantes, ainda assim eles insistiram em cruzar o asfalto. Foi uma correria desenfreada, de um meio-fio ao outro. Tudo isso com a intenção de economizar míseros minutos para não perder o micro-ônibus que os levaria de volta para casa.


O coletivo chegou, subiram logo. Cheio como sempre, esperaram que alguns passageiros descessem quatro paradas depois como era de costume. A primeira a se sentar foi Valquíria Botafogo. Sentou-se à janela conforme sempre gostou. À sua frente, instantes depois, acomodaram-se Jardel e Erico, o primeiro ao canto e este último na ponta do assento multicolorido que alegorizava aquele veículo já tão carnavalizado, feito duma lataria tricolor e com assoalho pintado de cor alumínio.


Quando o micro-ônibus da empresa Rio Ouro atingiu mais ou menos a metade da viagem, na altura do Colubandê, ele lotou novamente. Sentados ainda no banco azul turquesa com pequenos minimosaicos em amarelo canário, os dois rapazes, funcionários de produção do laboratório B|Braun (situado no Arsenal), conversavam. Diálogo animado, gargalhadas exageradas, típicas de quem teria folga no dia seguinte.


Valquíria Botafogo, que estava acomodada no banco detrás, parecia interessadíssima no bate-papo daqueles seus alegres companheiros de trabalho.


_ Ah! Também quero saber do que estão rindo, conta vai!


_ É que nosso supervisor segredou que, quando era jovem, desfilou por uma grife de moda praia de uma loja lá de Madureira.


_ Quem?


_ Joaquim, é o nome dele, você mesma o conhece, disse que foi até fotografado para uma revista de propaganda naquele tempo.


_ Era de sunga, era?


_ Sim, usava uma sunga coral mamão-papaia, acredita? E que a partir de então passou a ser destaque do Cacique de Ramos.



Enquanto conversavam, Valquíria se esticava e projetava o seu busto para frente, apoiando-se no encosto do banco azulado. Sua região lombar ficou exposta, consequentemente a parte posterior da cintura da calça ficou com um vinco considerável. Permitiu-se assim que um velho pescador, também passageiro daquela viagem, segurando o balaústre do micro-ônibus, barbudo e de cabelos desgrenhados, conseguisse sem querer jogar uma ponta de cigarro pela janela, e a binga impulsionada pelo ar que soprava contrário acertasse o espaço entre a lombar e a calça da amiga de Jardel e Erico. Pasmem! Isso mesmo! Arremessou o resto de cigarro aceso através da janela e, devido ao vento causado pelo veículo em movimento, aquele pobre senhor com unhas grandes e sujas de tanto cortar minhocas a servirem de iscas naquela pescaria à tarde teve a infelicidade de que a binga esfumaçada e ainda em brasa encontrasse o veio entre a roupa e a pele, no intervalo dos glúteos superiores da funcionária de fábrica. Então, pasmem novamente! O pobre do ancião imundo, já assustado do infortúnio que causou, resolveu enfiar a mão no regato da Valquíria. Ela desorientada, sem entender ainda o que ocorria, mas sentindo a quentura incomum que lhe chamuscava, levantou-se com vontade de esbofetear o sósia de Matusalém. Esse "pescador de confusões" tentou se explicar e contar o que acontecia, porque a "chupeta do diabo" continuava entre os glúteos da revoltada colega, enquanto o homem encardido prestes a chorar gaguejava e apanhava. Por isso, pasmem pela terceira vez! O septuagenário, motivado pela infeliz tentativa de se explicar e avisar à trabalhadora farmacêutica quanto ao fato da binga ainda se encontrar no seu "entre-lugar", lançou-se novamente na empreitada perigosa de mergulhar as famigeradas mãos calejadas na "reta-guarda" da coitada. _ "De novo! De novo, seu tarado!" _ Gritou Valquíria. Mas desta vez, a caricatura de "Mago Merlin Sul-americano" afastou-se, dizendo que só tentou apagar o fogo que a mulher mantinha no traseiro. Enfim, a amiga de Jardel e Erico, ao ouvir o já afastado velho pescador, entendeu o que acontecia e retirou o amassado pedaço de cigarro.


Após os ânimos se acalmarem, passageiros que assistiram à cena perguntaram aos rapazes amigos da senhora Botafogo: por que eles não fizeram nada?


_ Vocês não são amigos da moça? Olhem só, toda queimada e arranhada na bunda coitada.


_ Estamos até agora sem entender direito o que aconteceu, minha senhora, nem assimilamos ainda tamanha confusão.


_ Deviam se envergonhar!



Assim, para dar cabo desta história, vale dizer que o pior ainda estava por vir. Ela precisava contar ao marido o porquê de tantos arranhões e marcas de brasa naquela parte feminina que é considerada preferência nacional entre os homens brasileiros. Pois, sabemos caro leitor, nos dias de hoje, é quase moda um certo sadomasoquismozinho entre relacionamentos extraconjugais. Mas isso é assunto de casal, e entre marido e mulher, você já sabe... Enfim, nunca mais se teve notícia do maior e mais desastrado pescador de acarás-de-buraco que já se viu. No entanto, sabe-se que a história do incidente no micro-ônibus ainda é contada naquela indústria farmacêutica, e que Jardel e Erico perpetuam esse acontecimento como se fosse algum tipo de ficção.


Esse texto foi publicado originalmente na UOX - Revista Acadêmica de Letras-Português, sob o título de O caso do cigarro. www.nexos.ufsc.br/index.php/uox/article/view/1490

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.





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