S.U.Z.Y
- Jornal Daki
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SÃO GONÇALO DE AFETOS
Por Paulinho Freitas

O cemitério central de São Gonçalo do Amarantes nunca viu um enterro com tantas histórias, tantos segredos, tantos sentimentos, tanta luz e tanta escuridão habitando o mesmo espaço.
Era o enterro de S.U.Z.Y., a figura mais amada, mais temida e mais odiada ao mesmo tempo. A mais ousada das criaturas, o mais ingênuo dos seres humanos, a mais safada das amantes, a mais pura alma, a melhor amizade, a mais fervorosa beata, a mais puta de que já se teve notícia. Enfim, o melhor do ser humano. Reuniu todas as qualidades e todos os defeitos num só balaio e nasceu, desceu à terra e viveu o melhor da vida de todas as criaturas.
O velório foi longo, começou às dez da manhã com uma ladainha das senhoras da Legião de Maria congregadas na Igreja de São José Operário e N.Sra. do Perpétuo Socorro, Capitaneada por Maria da Penha, a mais devota das irmãs. Depois, o pastor Deusdete Vieira deitou falação enaltecendo a vida, a fé, o valor despendido por ela, todos os meses, para que ele pudesse se locomover em busca de almas perdidas, o pedido do perdão de Deus para quem partia deste mundo em busca do encontro inevitável.
Padre Gabriel Cardoso entrou em cena logo depois, enumerou as vezes em que ela esteve no confissionário pedindo penitência por seus pecados, falou sobre as semanas de jejum, as ofertas generosas no ofertório das missas dominicais e o sagrado dízimo de todos os meses.
Padre Gabriel olhava firme nos olhos de cada um ali presente e dizia: A confissão é um segredo inviolável, mas Deus, em sua onipotência e onipresença estava lá, viu cada ato pecador desta alma que agora entrego de volta a Ele. Pura, sem pecados, pois se penitenciou durante a vida e até antes do último suspiro. Que Deus a receba em seus braços, à luz de sua Santa Face, Amém! Os homens olhavam para o chão, de olhos fechados, apertando os corações e se benzendo. As mulheres se entreolhavam, olhavam para os maridos com desconfiança, apertavam os terços contra o peito, se benziam e todos repetiam: Amém!
No posto de gasolina perto da capela, dentro do carro, encoberto pela película escura dos vidros, Álvaro, o dono da quitanda, devoto de N.Sra. das Graças e temente a Deus como nenhum outro ser humano, chorava em soluços, com a alma em frangalhos. Queria estar lá, abraçar o corpo e beijar o amor de sua vida, que negou durante todo o tempo em que aquela santa alma viveu e agora daria sua perna esquerda, pois a direita era mais aleijada que sua honestidade, para ter em seus braços novamente, quem tanto prazer lhe deu.
No bar, parede e meia com a capela, um compositor solitário, o Heitor Turi Turé escrevia um samba, poesia, uma carta, ou talvez palavras desconexas para se lembrar de quem o amparou nas manhãs em que em casa chegava bêbado das rodas de samba e sua mulher, a Ledinha, não o deixava entrar. S.U.Z.Y dava-lhe abrigo, comida, às vezes até banho quando a bebida era muita.
Biguá, presidente da G.R.E.S. Unidos do Bêco, chegou com a bandeira da escola para cobrir o caixão e quase desmaiou ao se aproximar, a emoção foi muita, lembranças que saíam do fundo da alma perfurávam-lhe o coração.
Tiziu, um andarilho que catava recicláveis e que morava nas esquinas, tudo via e de tudo sabia, era respeitador, trabalhador, honesto e calado. Era ele, os olhos da madrugada, enxergava cada criatura da noite que se esgueirava pela escuridão até a casa de S.U.Z.Y. e antes do amanhecer, coberto pela capa da noite e pela neblina, sumia sem deixar rastros.
Tiziu, ao amanhecer, andava pelas ruas gritando: Eu vi hein! Eu vi! Tô com fome! Alguma alma caridosa me dá um café? Eu com fome, solto a língua, quem não tem fome, mudo é! Eu vi hein! Mesmo quem não havia pecado virava alma caridosa e servia um banquete matinal a este louco (?). Vai que esse negócio de ler pensamento é verdade! Olha a merda! Deitado sob o caixão embrulhado a seu inseparável cobertor, a tudo observava. De vez em quando descobria a cabeça e gritava: Eu vi hein! Uma “alma caridosa” sempre aparecia com um salgado e um refrigerante, mas também, um chute nas costelas, sorrateiro e “sem querer” o faziam perder a respiração e ele gritava: _ Você? vi não! E velório que segue. A noite vai ser longa...
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor