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O Patronato e a viagem inusitada - por Erick Bernardes


Praça dos Ex-Combatentes, São Gonçalo - RJ/Foto: Divulgação
Praça dos Ex-Combatentes, São Gonçalo - RJ/Foto: Divulgação

Está para surgir tentação maior do que cinquenta por cento de desconto no Uber recebido assim de repente. Ficou curioso? Explico. Não demorei nem dez minutos para tomar banho, me arrumar, ajeitar a mochila e partir para a faculdade tão logo o aplicativo emitiu seu aviso viciante em oferecimento de meia passagem no preço promocional da corrida.

Incrível como o conforto abocanha mais almas preguiçosas do que o diabo em noite de halloween. Verdade, acho que eu nem precisava sair de casa. Do telefone mesmo (quem sabe?), talvez eu resolvesse tudo rapidinho na secretaria da universidade. Mas sentir o ar condicionado do carro ao preço de um picolé? Tentação. Sou tarado por ambiente gelado. Melhor sentir o friozinho no verão escaldante.



Bem, certo é que o condutor do veículo era uma comunicativa mulher que carregava consigo excelente destreza no volante. Essa motorista do Uber soube (pelo Gps) meu destino certo, perto do bairro Patronato, e aventurou-se a papear. Dissera que normalmente dirigia de olhos fechados por São Gonçalo. “Força de expressão hein meu amigo! (Gargalhou). Olhos abertos protegem o bolso do motorista e a integridade física de ambos”, brincou. Ao afirmar que conhecia como poucos o município, Aline mostrava ser de fato condutora excelente. Evitava engarrafamentos, respeitava semáforos, e seguia narrando sem perder de vista o espelho do retrovisor cuidadosamente lustrado. Segredara ter nascido coincidentemente no Patronato — e deixou perceber certa nostalgia de uma história que nem era dela. Isso que se chama apropriação da memória! Recordar lembrança de outrem, mente admirável, biografia alheia. Incrível esse mecanismo cognitivo de que poucos possuem bem. Se o motorista é o psicólogo das ruas, conforme a canção de Roberto Carlos, não sei, longe de mim ter conhecimento da profissão dos outros. Porém, fatalmente, se houvesse um divã naquele carro, a paciente em análise seria ela, e eu o terapeuta. Inevitável.

A moça evidenciou sensibilidade extrema com o assunto. Coitada, se emocionou tanto ao narrar sobre seus antepassados. Séculos antes, o bairro, para o qual eu me dirigia, chamava-se Fazenda Jacaré, o espaço pertencera ao Barão de São Gonçalo. Dizem até que Dom Pedro II deu as caras por lá. Curioso, muitíssimo curioso. Tempos depois, nomearam a fazenda com o nome de Vila Éden, para só bem mais tarde agraciarem a pequena região com a categoria de bairro, dali por diante refeririam o entorno como Patronato. Nesse meio tempo, dirigindo e conversando, Aline contou-me a história do seu avô e da sua avozinha, ainda muito jovens, quando construíram a vida no Patronato de Menores. Ele, pai da sua mãe, foi antes disso aluno interno da colégio católico que deu nome ao bairro e, logo que saiu do internato, montou banca de camelô para vender guloseimas na porta da universidade; ela (sua avó), outrora menina reservada e professora de catecismo na capela transformada em Igreja Nossa Senhora Aparecida. Agora, essa mesma avozinha é uma doce anciã de cabelos brancos e de sabedoria extremada — e passara a complementar a renda da família dando aulas de crochê. Trabalhadores eles sempre foram. Casal lindo deveriam ter sido felizes naqueles anos passados. Coisa linda de se ver. Tempos de romantismo: amor e cumplicidade. Lá onde padres e freiras vigiavam até selinhos apaixonados dos alunos do colégio interno.

Em resumo, resta dizer que a conversa terminou de súbito. Hora de descer. Paguei a corrida e agradeci prometendo: “logo que o jornal publicar essa narrativa eu envio pra você, prometo, hein!”. Legal é ouvir coisas inusitadas. Pessoa bacana a motorista Aline, gente boa mesmo. Ela, assim como eu, carrega nas veias o incompreendido dom da contação de “causos”. Só não sei como encontrar a falante condutora para enviar essa história. Quem sabe a encontro em outra corrida, quem sabe!


>>> Publicado originalmente em 10/02/2019.


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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.





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