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Garoto Zumbi

Por D.Freitas

Arte: Jornal Daki
Arte: Jornal Daki


Quando crianças, nosso costume era criar amizades. Independentemente da dificuldade, acabamos encontrando alguém compatível conosco. Existiam os meninos do futebol, que mesmo que não jogassem bem – ou até mesmo não jogassem em momento nenhum, comentavam os jogos de domingo toda segunda feira antes das aulas e na hora do recreio.


Existiam os meninos que eu costumo classificar como garotos do caos, que simplesmente queriam ver o circo pegar fogo sem importar a aula ou o momento. Não por serem maus

ou algo do tipo, mas por não conseguirem ficar quietos. Existiam os nerds, que costumavam falar sobre histórias de quadrinhos, desenhos e até alguns filmes... entre outros pequenos grupos.


No entanto, resumidamente, eu nunca me enquadrei em nenhum destes. Existiam também as meninas, pelas quais eu sentia o mais puro pavor e das quais eu não me aproximei até a sexta ou sétima série.


Sendo assim, sempre fui só, até conhecer um local onde eu parecia entrar em outro mundo. Um local onde o tempo parecia passar mais rápido do lado de fora e isolava todo tipo de problema que um adolescente ou criança poderia ter: o fliperama do Gaúcho.


O Gaúcho era um homem que surgiu do nada. Branco, queixudo, magrelo e de idade mediana. Ninguém sabia muito dele, nem gostava muito dele ou desgostava. Ele só surgiu, como se soubesse que as pessoas precisavam dos serviços do seu salão de jogos naquela cidade pacata.


A primeira vez que entrei lá, uma tia minha me ofereceu cinquenta centavos para eu carregar algumas caixas da sua padaria, que por acaso, ficava em cima do fliperama.

Quando eu carreguei a última caixa escada acima, pelo canto do olho pude ler: “duas fichas por cinquenta centavos”, e sem pensar duas vezes, tomei o caminho pra torrar o meu primeiro salário.



Naquele dia, conheci um jogo onde os dois jogadores competiam em uma espécie de sobrevivência entre duas raças, um era soldado e o outro um zumbi. O soldado usava suas armas e o zumbi tinha apenas as suas garras e dentes, logo, todos brigavam para ser o soldado e quase ninguém queria ser o Zumbi. Exceto Josué. Ele vestia uma camisa abotoada até o pescoço, calças sociais e sempre levava uma bíblia debaixo do braço.


Todos os cumprimentaram assim que ele chegou, por isso eu soube seu nome. Nunca nos apresentamos formalmente, mas jogamos, inúmeras vezes – eu de soldado, ele de zumbi. Normalmente eu perdia, mas sempre combinávamos de jogar na semana que viria, até se

tornar algo religioso, mais do que a sua ida na igreja, que era basicamente sabotada nessas fugas ao fliperama, pois ele fugia um pouco da pressão da sua mãe para seguir esse caminho.


Não que ele não tivesse vocação, mas ele queria ter opção. Conversamos sobre isso algumas vezes, conversamos sobre tudo. Não sabíamos nossos sobrenomes, respectivamente, onde

morávamos e quantos anos tínhamos, mas tínhamos compartilhado informações um pouco mais importantes e profundas... Arrisco dizer que foi um dos meus primeiros amigos, dos diversos que fiz naquele fliperama.


Certo dia, no horário da aula de educação física, fugi para o fliperama e encontrei as portas de correr fechadas. Sem placas, recados e nada do tipo. As lojas vizinhas, exceto minha tia que não poderia saber que eu havia matado aula, disseram que o Gaúcho tinha simplesmente desaparecido, da mesma forma que veio.


O tempo passou e, por anos, não vi mais o menino Zumbi.


Quando a gente começa a crescer, entende que é realmente difícil fazer amigos de verdade e valoriza um pouco mais os que se mantêm desde a infância. Valorizamos também nossas lembranças. Sendo assim sinto que é nosso dever honrá-las.



Pisei em um cemitério apenas uma vez na vida e prometi que não o faria nunca mais, pois não me senti nada bem, tampouco soube consolar aqueles que precisavam de um abraço ou de alguma palavra de apoio.


Prometi também não voltar à minha cidade natal, porque era mais fácil abandonar os problemas do que resolvê-los. Nunca fui bom em manter promessas, mas essas eram algumas que tentei cumprir por anos, com afinco. Até receber a notícia de que o menino Zumbi havia partido.


Por todo velório, até a decida do caixão, esperei que fosse apenas uma peça, que fosse mais um momento em que ele estava atuando ou algum tipo de piada de péssimo gosto. Pelos rostos ao redor, creio que todos esperassem o mesmo.


Uma vaga esperança deixada em um buraco enorme causado pela ausência de alguém tão ímpar. De escolhas ímpares. Opiniões ímpares e fortes. Ninguém tirava uma ideia da sua cabeça. Infelizmente.



Queria poder ter me despedido quando o fliperama fechou as portas.


Quando resolvi me mudar.


Queria ter tido a ideia de trocarmos contato naquela época.


Queria que só dessa vez, jogasse de soldado para eu estar no seu lugar.


Ao Garoto Zumbi: essa é a minha forma de dizer adeus.


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Davi Freitas (D.Freitas) nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos. 


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