Coisas da pandemia V: vestibular da vida, por Paulinho Freitas
- Jornal Daki
- 9 de jun. de 2021
- 3 min de leitura
SÃO GONÇALO DE AFETOS

Mércia e Gilberto viveram bem durante mais de vinte anos. Eram felizes e o sexo era fogoso. Em todo canto da casa, não tinha hora nem lugar. Se esbarrassem um no outro, pronto! Era um rasgar de roupas, mordidas, lambidas, gritos, sussurros e êxtase. Durante a semana ele trabalhava numa metalúrgica e ela era professora, saíam pela manhã bem cedinho e só chegavam tarde da noite. Mesmo assim, mesmo cansados dava tempo de uma conversa sobre o dia, um jantar e antes de dormir amor. Muito. Quando o cansaço não deixava um esperar pelo outro e o sono chegava primeiro, pela manhã, ao acordar era certo.
Nos finais de semana Gilberto jogava bola com os amigos, frequentava o bar de Zeca e só chegava em casa de tardinha. Enquanto isso Mércia passava a maior parte do tempo corrigindo provas e preparando as aulas para a próxima semana, ossos do oficio, ainda tinha que preparar o alimento da família, congelar, dar um trato na aparência, separar roupas e sapatos. Quando Gilberto teimava em ajudar ela o mandava para a rua, ele não fazia do jeito que ela queria e então era melhor fazer sozinha. Quando sobrava um tempinho dava um pulinho na casa de Deolinda para um dedinho de prosa. O tempo foi passando e aqueles arroubos de paixão foram escasseando e aquela relação deu uma natural esfriada.
A pandemia chegou trazendo debaixo do braço a prova de convivência que todos os seres humanos estão fazendo. Gilberto e Mércia tiveram que ficar em casa. Aí começaram a aparecer os defeitos um do outro que até aquele momento ou não notaram, ou não prestavam atenção se acomodando com a situação e fingindo não ver. Mas ficando vinte e quatro horas juntos tudo se nota e tudo que contraria dobra de tamanho. É a pia cheia de louças pela manhã devido a Gilberto ficar até tarde vendo televisão e comendo o que tivesse pela frente e latas de cerveja no braço da poltrona e na mesa de centro da sala. Quanto a Mércia, trocou aquelas vestes sempre elegantes e perfumadas por roupas simples e aquele arrastar de chinelos o irritava. Não podia ver Gilberto sossegado que já queria trocar os móveis da sala, fazer uma horta, enfim, ele se transformou numa estrela cadente, a cada vez que ela o via fazia um pedido. A relação estava com os dias contados.

Até que na semana passada quando iam às compras, Mércia quando abriu a porta do carro viu uma calcinha minúscula no banco do carona. Praguejou Gilberto para que fosse infeliz até o fim de seus dias e que a morte o encontrasse no primeiro poste. Lá se foram, ela falando sem parar e ele morrendo de rir. Quanto mais ele ria mais alimentava o ódio de Mércia, até que ela começou a agredi-lo, ele perdeu a direção do carro e bateu num poste.
Ela nada sofreu porque ele tirou o lado dela do poste encarando o concreto e o ferro sozinho. Agora ele está no CTI do Pronto Socorro Central talvez também fazendo um exame de consciência, conseguindo enxergar que ele só tinha visto defeitos nela e ela nele. Ela está sentada na recepção fazendo a mesma coisa. Esqueceram-se de que a paixão já não era mais tão grande, mas o amor e o respeito tinham nascido com mais força e eles não perceberam. Ele apesar de fazer aquela bagunça toda e reclamar, sempre fazia tudo o que ela queria e ouvia as broncas calado para não aborrecê-la.
Por sua vez ele não via o tratamento vip que ela lhe dava. A comida sem tempero por causa de sua saúde, o seu privar de ver seus programas favoritos para que ele pudesse passar as tardes vendo futebol. O cuidado e o carinho que um tinha pelo outro era o amor dizendo:
_Estou aqui!
Ouvi esta história da própria Mércia que chorava no ombro de Deolinda na recepção do Pronto Socorro. Eu estava do lado e estiquei os ouvidos, curioso em saber como tudo ia terminar. Tomara que Gilberto saia dessa inteiro para curtir o recém descoberto amor por muitos anos. Espero também que os casais que estão passando por esta prova tenham paciência e vejam que o amor está pulando ali na frente deles pedindo um pouco de atenção. As arestas existem para serem aparadas.
Ah! A calcinha em questão era a máscara de Gilberto esquecida no banco. Ela viu a máscara enrolada e confundiu a alça da máscara com o cós de uma calcinha. Por isso ele gargalhava.
Boa prova a todos!

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.


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