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Cosme - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

"Ela saiu com um andar gracioso e elegante, subiu as escadas da igreja como uma dama que já não se vê mais num andar tão charmoso"/Frame Reprodução YouTube
"Ela saiu com um andar gracioso e elegante, subiu as escadas da igreja como uma dama que já não se vê mais num andar tão charmoso"/Frame Reprodução YouTube

Embaixo da rua onde tem o posto de saúde municipal de São Gonçalo tem a Casa das Artes, um lugar pequeno onde antigamente artistas da Cidade expunham suas obras, apresentavam pequenas esquetes de teatro ou faziam pequenas apresentações musicais, há muito tempo não acontece nada lá e sob sua marquise os nossos irmãos sem lar fizeram seu cantinho para descansar à noite. Era finalzinho de tarde, eu vinha de uma consulta médica e estava prestes a atravessar a rua para conversar fiado no bar e fazer minha “fezinha” quando ouvi um psiu comprido:


_ pssssssssiuuuuu!


Olhei para trás e uma menina magrinha, fazendo gestos me perguntou:


_ Tem um cigarro?


_ Não fumo, mas posso comprar um pra você. Vai lá no bar - Respondi.


Ela fez sinal afirmativo com o polegar e sentou-se na calçada. Atravessei a rua, entrei no bar, pedi uma cerveja que fiquei enrolando para beber, bem devagar. De onde eu estava observava a garota mexendo em suas coisas, passando maquiagem no rosto, penteando o cabelo. Virou-se para a parede e trocou a blusa ali mesmo. Fiquei pensando na vida dessas mulheres que moram na rua, aliás, todos os moradores de rua não tem como ter privacidade, tem coisas que precisam fazer sob o olhar de todos. Será que um dia isso vai ter fim? Quando pensaremos nestes irmãos?



Ela atravessou a rua e veio de encontro a mim, eu já me adiantei e comprei um maço de cigarros, o pessoal do bar já sorria de canto de boca, alguns foram gargalhar no fundo do bar. Explico: a menina em questão era um menino travestido. Eu sabia disso, mas se ele quer ser menina vou trata-lo como tal. É que tem gente que ainda não se ligou que a vida vai se ajeitando, fazendo as pessoas tomarem coragem para exigirem seu lugar de direito na sociedade e a obrigação de todos nós é abrir os braços e parabeniza-los por tentarem ser felizes da maneira que acharem melhor. Pra quê ficar sofrendo coberto por uma capa que só faz feliz aos outros? O negócio é dar um chute no balde, derramar esse sabão que suja mais do que limpa e deixar o preconceito escorregar e cair.


Antes que ela falasse qualquer coisa dei o maço de cigarros e perguntei se ela queria beber alguma coisa, ela fala com uma voz cantante e fazendo caras e bocas, parece estar constantemente sob o efeito do álcool ou outra substancia tóxica, mas é o jeito dela mesmo.


_Aceita uma bebida?


_ Cerveja, pode?


_ Você já tem idade para beber?


_ 23 anos amor, bem vividos, cobiçada, desejada e “dada”, serviço completo, sem negociação, protegida por ogum, nascida na gira de Nanã, (Saluba Nanã!) e criada na linha de Yemanjá, eparrei Oyá! Tá ligado?


Dei o copo cheio de cerveja que ela pegou de minha mão e sorveu de um gole só. Então pedi:



_ Me conta como você veio parar na rua.


_ Meu pai descobriu que eu era veado e me jogou na rua. Simples assim.


_ Mas como foi? E sua família? Ninguém te acolheu?


_ Sempre tem um que quer dar abrigo pra gente, mas quer que a gente reze na cartilha deles, não pode isso, não pode aquilo, não pode aquilo outro. Não fode! É melhor fingir que é hétero e ficar em casa mesmo, pelo menos você tem mais liberdade não é mesmo? E já tinha quinze para dezesseis anos, estudava no Colégio Municipal Castelo Branco, ali no Boassú, meu tio Badú me viu beijando na boca de um colga, chegou em casa e contou, levei uma surra que tá doendo até hoje. Aí esse meu tio me levou numa termas, esses lugares que a mulher vende o corpo, cê sabe né? É babado! Aí me botou no quarto com a menina que começou a me chupar todo e queria que eu comesse ela, fez de um tudo, mas meu pau não ficava duro de jeito nenhum, eu não gostava da fruta, fiquei nervosa e comecei a chorar, ela vendo meu sofrimento falou que ia mentir pro meu tio dizendo que eu tinha feito tudo direitinho, quando meu tio contou lá em casa todo mundo pensou que eu tinha virado homem, meu pai chegou a chorar de emoção e eu chegava a chorar de tanto rir. Onde já se viu bicha virar homem ou homem virar bicha? Desaquenda! Quem é um já nasce um e quem é outro já nasce outro, amor, tem terceira via não, tem gente que faz os dois, mas é tudo a mesma coisa no final. É só esse copo? Tem mais não. Então acabou o papo! Eu hein!


Pedi outra cerveja e dei a garrafa nas mãos dela.



_Pronto! Tá aí o que você queria. Continua que a conversa da boa.


_Então tio, minha mãe sempre soube que eu era gay, nunca falou nada, mas sabia o que é que mãe não sabe? Ela se faz de besta pra gente não ser infeliz. Pode até não ser do agrado dela, do jeito que ela queria que fosse, mas se for o jeito de a gente ser feliz ela fica feliz também. Só ela ficou do meu lado. Quando papai viu que não tinha jeito, saiu me pegando de tapa e chute gritando pra eu ir embora, que não queria veado em casa, uma baixaria só, babado tio! Saiu a vizinhança toda na rua pra me ver correndo e papai atrás de mim me xingando. Fui pra casa de uma tia, irmã de minha mãe que deixou eu ficar lá. Os primeiros dias fiquei bem, ela foi lá em casa, pegou minhas roupas, trouxe minha mãe que chorou muito e disse que eu podia voltar para casa, que papai já tava mais calmo e ia me aceitar, eu achei melhor não voltar, sabia que ele ia me bater de novo e pedir perdão, bater de novo e pedir perdão, há quer saber? Agora vou viver minha vida! Ninguém mais vai encher meu saco!



Pois sim, quando minha mãe foi embora, minha tia com o marido dela me botou sentada na sala e já começaram a rezar a cartilha: "Não pode falar mole, não pode rebolar, não pode andar pintado, não pode ter amigo veado..." caralho! Que porra de veado sou eu que não pode se vestir de veado, ter amigo veado, dar uma melhorada na araca, pintar o moco, arranjar um namorado, eu hein! Babado forte! Falei com ela na hora: olha minha tia, agradeço muito sua ajuda de me acolher aqui, de cuidar de mim mas se é pra ser o que eu não sou é melhor não ser ninguém. Se a família me aceitar do jeito que eu sou tá bom, se não aceitar tá duas vezes bom. Agora ou vai ou racha e já com quase dezessete anos saí de casa e fui morar na rua. Tem um bar que só é frequentado por LGBTs e que a gente pode namorar e ficar à vontade. Conheci umas meninas que fazem programa ali perto do clube Tamoio, me enturmei, fui morar com elas lá no Porto Novo, fazia meus programas também e ajudava a pagar as despesas. Foram uns tempos muito bons, ia pras escolas de samba, desfilava, namorava, estava feliz, só que comecei a fumar maconha, usar crack, beber e o dinheiro já não dava, daí os mesmos amigos que me davam a droga começaram também a pegar meu dinheiro todo, já fui ficando mal criada com minhas amigas, aprontava confusão, brigava, cheguei até a pegar dinheiro delas pra dar pra esses amigos, acabei sendo expulsa de lá, até hoje elas não falam comigo, nem no bar posso entrar mais, acho que fiquei meio malucada...


_Mas você não pensa em melhorar de vida? Trabalhar, estudar, parar com as drogas, superar essas coisas ruins que aconteceram?



_ Às vezes eu penso sim, quando estou muito doida, não aguento mais, chapada mesmo sabe? Penso em voltar pra casa, voltar pros estudos, fazer um futuro diferente pra minha mãe parar de chorar, ela me vê na rua e sofre muito. Quando passa a onda das drogas, de manhã eu passo muito mal, fico o dia todo deitada, não aguento fazer nada, aí vou melhorando, melhorando, chega um e me dá um cigarro outro me dá um trago num “preto”, me deixa dar uma cafungada no pó deles e assim começa tudo de novo, peço um dinheiro aqui outro ali, o povo dá mesmo né! Aí quando vejo já tô doidona de novo. Estou indo na reunião do Alanon ali ao lado da igreja, minha mãe vai também às vezes, eu tô tentando, mas é muito difícil.


Nesse momento ela fica fazendo desenhos imaginários com um dos pés no chão e de cabeça baixa. Me dá vontade de abraçar aquela menina que podia estar num outro rumo se tivesse sido compreendida em casa, penso nos meus filhos, nos filhos dos amigos, caramba! O que se passa na cabeça de certas pessoas? Queremos ser felizes, mas para isso as pessoas tem que ser do jeito que queremos ou então não serve. O ser humano não mereceu a atenção de Deus ao lhe dar raciocínio, é muito egoísmo de nossa parte. Sabe-se lá Deus o que essa menina já sofreu por aí, com 23 anos já passou o que eu nem imagino o que seja com sessenta e poucos. De repente ela me acorda dos meus pensamentos:



_Quer fazer um programa tio? Faço barato, só pra comprar uma quentinha.


Sorrio, quase gargalhando e respondo:


_ Não filha, tio é casado.


_Mas tem um monte de homem casado que faz programa com a gente na madrugada.


_ A diferença é que existem homens bem resolvidos e homens mal resolvidos. E eu sou bem resolvido. O pessoal das igrejas não passam todos os dias dando janta pra vocês?


_ Sopa né tio, todo dia sopa não dá né!


_ Dinheiro eu não tenho, mando fazer uma quentinha aqui no bar, você escolhe a comida depois eu acerto. Você quer?


_ Quero sim tio. Dá pra sair mais uma cerveja?


_ Cerveja não, vou te dar refrigerante, se você quer ser outra pessoa começa de uma vez, não adia o futuro, faz ele começar hoje. Não é melhor assim?



Ela não falou mais nada, escolheu a comida e ficou do meu lado olhando para a rua em silêncio, quando o rapaz lhe entregou a quentinha ele a cheirou, sorriu e me disse:


Eu vou tentar tio, vai ser babado, mas vou tentar. Que oxalá lhe abençoe. Fui!


Ela saiu com um andar gracioso e elegante, subiu as escadas da igreja como uma dama que já não se vê mais num andar tão charmoso, entrou no estacionamento da igreja e sumiu. Me arrependi de não tê-la abraçado e beijado sua testa. Depois desse dia não a vi mais perambulando por aí. Será que conseguiu? Tomara Deus! É babado! Ops.!!!!!!

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.







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