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Expectativas

Por D. Freitas

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Há tanto tempo me mudei pela primeira vez… tanto que não lembro o quanto. Lembro apenas que saí do meu lugar, dos braços da minha família, dos meus amigos inseparáveis e das primeiras pessoas que me fizeram sentir o nervoso do princípio de uma paixão que normalmente ficava no quase. Paixões das quais não me lembro o nome, nem o rosto, nem a história da maioria, exceto uma que deixou uma frase que permeia a minha cabeça quando vou fazer várias coisas e hesito.


“A expectativa sempre supera a realidade.”


É extremamente estranho pensar que ouvi isso de uma criança de quatorze anos, quando eu ainda era uma criança um pouco mais nova. Estranho também é pensar que desde esse dia eu entendi tudo o que ela quis dizer com isso. Talvez nem ela desse tanta importância a essa frase, pela leveza em que a proferiu enquanto arriscávamos algumas manobras de skate com os meninos mais velhos. Disse isso após cair em uma tentativa frustrada de flip, após ouvir meu incentivo para que ela tentasse de novo, e os conselhos dos mais velhos que diziam que após o flip ela conseguiria fazer coisas ainda mais incríveis. Talvez ela tenha balizado esse breve momento de lucidez madura após ouvir que o flip era apenas o primeiro degrau de uma escada de manobras bem mais difíceis e talvez mais incríveis. Talvez.


Quando parti pela primeira vez, lembro que eu não era novo demais para andar sozinho pelo Brasil, nem velho demais para me sentir seguro estando só. Lembro que não era tão sentimental a ponto de chorar ao me despedir dos meus pais, mas fui o suficiente para aceitar seu convite de te ver só por uma noite. Passei semanas pensando em como seria, idealizando nós dois andando túnel abaixo em direção à orla de São Francisco, entre os carros, com as rodas dos patins e do skate chiando de forma longa mais uma vez, só naquela noite, mesmo que fosse a última. Quando eu me banhava, imaginava que nós dois caberíamos naquele box de chuveiro que nunca dividimos. Quando eu dormia, percebia que minha cama era pequena demais para mim, mas confortável o suficiente para eu e você. Imaginei... escrevi... desejei… criei… expectativas.


Nós nem dissemos adeus. Aquela noite não aconteceu e nem me lembro o porquê, mas nunca esqueci daquela frase. Não esqueci de tudo que vivi por antecipação.


Ainda penso nisso hoje, enquanto dirijo o meu carro por um trânsito de fim de tarde que, pela minha vivência, estou anestesiado. Já passei por vias piores, estados piores, situações piores e em carros menos confortáveis. Desvio um pouco do caminho comum pós trabalho, pois do meu lado repousa a Dona em uma crise de cólicas que só passa com injeções. Chamo-a assim, pois sempre que me perguntam se vou fazer algo no sábado ou se estou livre num domingo, eu dou o contato dela, seguido da frase: quem sabe da minha vida é minha esposa. Essa frase normalmente recebe a réplica em desafio: Você tem dona? Normalmente a resposta vem com uma sensatez, certeza e segurança absurda: “Sim.” Normalmente se vão com frustração. 


Ela não faz ideia de que tudo isso passa na minha cabeça enquanto a observo admirar as gotas apostando corrida ao descer pelo para-brisas e cantarolando algo que toca no rádio. Atrás das gotas, o trânsito segue. Ela me alerta. Partimos. Conversamos sobre seu medo de agulha insuperável mesmo tomando essa injeção quase todo mês. Conversamos sobre como todos no hospital do bairro já nos conhecem. Conversamos também sobre a insegurança dela em estarmos indo a um novo lugar para fazer a aplicação porque, por algum motivo desconhecido, no dia de hoje, o hospital do bairro se encontra fechado. Explico que vai ser a mesma coisa de todo mês e ela brinca dizendo que é incômodo mostrar a bunda pra outra pessoa. Digo que nem chega a ser bunda. Discutimos seriamente sobre a partir de quantos centímetros a bunda se chama bunda e deixa de se chamar lombar. Sério o suficiente para não trocarmos uma palavra durante os cinco minutos que antecedem a chegada no hospital e a pergunta do enfermeiro:


— Pode acompanhar a aplicação, se quiser.


Independentemente de ser bunda ou lombar, trocamos um olhar pelo qual conversamos em segundos sobre segurança, tanto física quanto o sentimento de segurança que eu poderia trazer ao seu lado durante a chegada da agulha. Seguimos para a aplicação. Saímos rindo ao lembrar do que disse o enfermeiro: “Não contrai a nádega”.


Nem bunda, nem lombar e nem choro de dor ou medo. Nada do que esperávamos.


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Davi Freitas (D.Freitas) nasceu em São Gonçalo, cria da cultura gonçalense, desde sempre conviveu com músicos, poetas e escritores. autodidata, aprendeu violão e bateria sozinho e junto com o irmão Lucas Freitas fez algumas apresentações até ter, por motivos profissionais, que mudar de estado. Como escritor, participou, pela Editora Apologia Brasil da Antologia em Tempos Pandêmicos e inicia agora sua trajetória no mundo das crônicas e contos. 

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