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Folcloreando não esquecemos quem somos - por Verônica Inaciola


Reprodução Internet
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Meu “retrato” de infância, minhas vivências e caminhos nas lutas pela brasilidade na juventude contribuíram demasiadamente para um olhar profissional que me permitiu reconhecer nas festas, nas brincadeiras, nas lendas, nos ritos de passagem e na forma de rezar, um patrimônio de inestimável valor imaterial.

Dançar quadrilha e ascender fogueira na noite de São João nunca foi mero divertimento, era pura religiosidade ritualizada pelos mais velhos para nos mostrar que nossas crenças são heranças que podem ser reconfiguradas, mas nunca esquecidas, pois funcionam como uma espécie de ancoradouro nos momentos dolorosos e norteadoras nas relações cotidianas. Usar fantasia pra brincar carnaval não nos afastaria da realidade, mas nos recompensaria, de certa maneira, pelas injustiças sofridas no campo social em que tantos direitos nos são negados. Desta forma toda sátira que produzimos, subvertendo a ordem nestes dias de folias, nos dá um pouco mais de sentido em estar no mundo, é a revanche, que embora muitos nem tenham a consciência de que é assim que funciona, nos traz uma sensação de recompensa.


E ainda tem as festas natalinas que trazem o espírito de harmonizar as relações, lembrando o nascimento de Jesus que foi um marco para a história da humanidade com a promessa de dias melhores, com mais “igualdade e fraternidade”. E assim nesses dias entre o Natal e o dia de Reis, as folias de reis ou reisados, os pastoris, os guerreiros, os caretas, a queima da lapinha, entre outras manifestações da cultura popular que reproduzem e comemoram em outro tempo e em outro espaço a cena do nascimento de Jesus, que aqui foi introduzida pela pedagogia catequética dos padres Jesuítas através das montagens dos autos teatrais, também foi combustível nessa visão de mundo. Vivências e experiências com um sagrado que em hipótese alguma delimita fronteiras com o profano.



Esses três momentos permeados por festejos e ritos expressados acima, os folcloristas consagrados chamam de ciclos do folclore, de festas e celebrações que estão diretamente ligadas a um legado deixado de herança pela religião hegemônica que durante quatro séculos determinou a maneira de ser de um povo que se formava, e não temos como fugir desse legado que está na nossa estrutura de formação cultural. Mas graças a Deus o povo sempre subverteu a ordem com seus discursos ocultos, pois os seus saberes e fazeres são resistências, que dissimulam o poder.


Procissões, ladainhas, benzeduras, danças para o santo padroeiro, grupos rituais como os congados e as folias de reis e do divino se espalharam pelos cinco cantos do país, e assim fomos no percurso da história reinventando essa crença, criando as devoções, aquele catolicismo popular tão discriminado pelos conservadores da religião, com imagens, fitas, bandeiras, que na simbiose com os povos originários e mais tarde com negros africanos que sofreram a diáspora para aqui serem escravizados resultou em toda essa beleza.


Falo desse sincretismo religioso, mas de maneira alguma de forma pejorativa, sempre o uso na visão de Roger Bastide que abominou todo pensamento eugenista em suas etnografias para entender como se dava esse fenômeno à partir da fala dos seus praticantes. Não estou aqui romantizando os fatos, sabemos que existiu muitas tensões, muitos conflitos, mas para nossa sorte muitos foram mediados e resolvidos, garantindo a permanência da realeza dos Orixás africanos que mostraram as suas “competências miraculosas” tal qual os santos católicos. Se Xangô é São João em muitos estados brasileiros e se Iemanjá é Nossa Senhora dos Navegantes no Rio de Janeiro e Nossa Senhora da Conceição em Recife, no imaginário dos fiéis não existe nenhuma contradição nesse sistema de crença, muito pelo contrário, eles se sentem duplamente protegidos.


O tambor de crioula, o jongo, o maracatu nação, e muitos outros festejos do universo africano criados e recriados em solo brasileiro, são brincadeiras que funcionam como recurso para a permanência do sagrado desses povos, e se elas permanecem é porque ainda representam resistência, principalmente ao racismo estrutural.


E assim, também as crenças dos povos originários nos espíritos dos antepassados, suas lendas, suas danças, suas relações com a natureza, toda sua cosmovisão, também impregnou a nossa maneira de cultuar o sagrado. Os caboclinhos, o maracatu rural, são leituras dessas práticas indígenas, uma forma lúdica que os descendentes de alguns povos encontraram para não perderem as suas origens.


Abordei aqui separadamente essas contribuições étnicas nas manifestações da cultura popular mais como recurso de historicizar os fatos e intencionando trazer à reflexão uma narrativa de dominação dos colonizadores que mesmo se sobrepondo as cosmovisões dos outros povos não conseguiu o protagonismo da sua visão de mundo, foi inevitável, ainda bem, essa imbricação de costumes e crenças.


As festas, os folguedos, as artes e os ofícios que constituem o repertório dessa cultura popular são representações simbólicas que nutrem o imaginário de seus praticantes, fazendo com que suas originalidades não se percam diante de tantos apelos sedutores de uma cultura de massa. É o cuidado, mesmo que inconsciente, com a preservação dos seus mitos e ritos, e isso gera resistência, até mesmo à mudança do campo religioso brasileiro, mas essa já é uma outra história.

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Verônica Inaciola é Doutoranda em Ciências da Religião, Mestre em Ciência da Arte e Pedagoga


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