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Lourdes - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS
Crédito: Unsplash
Crédito: Unsplash

O nome dela é Lourdes, os pais e o irmão Cícero vieram do nordeste do país, do meio do nada. Lá, só tinha sol e terra seca, só aquele povo consegue sobreviver a tamanho sofrimento. Um povo que confia em Deus desde o nascimento até o último segundo de vida.



Não desistem nunca e sempre pensam que vai chover para plantar e colher, viver com fartura de alimento. É só o que querem e à primeira nuvem mais moreninha no céu já correm com suas enxadas e sementes para semear e do mesmo jeito, com a mesma alegria que andaram o terreiro inteiro, o dia inteiro jogando as sementes naquele terreno árido voltam à tardinha para casa e às seis em ponto se ajoelham comovidos aos pés da Santa agradecendo a chuva que não veio e a colheita que jamais terão.



Ah meu nordeste querido! Há meu povo sofrido, ingênuo e verdadeiro! Como eu os amo! E às vezes, mesmo com todo o sofrimento queria ser um pouquinho como vocês.


Seu Raimundo, pai de Lourdes, não aguentando mais aquela vida e recebendo notícias do sudeste de que os conterrâneos estavam conseguindo sucesso não vacilou, pegou o pouco que tinha pôs a família na carroceria de um caminhão e deu adeus àquela vida, iria fazer como Severino que virou mestre de obras e já tinha casa própria em Duque de Caxias, num bairro chamado Lote XV e haveria de estar estribado na grana.


Uma viagem de muita dificuldade, de fome, de vento e frio, a chegada a São Paulo, uma cidade que parecida outro planeta com gente correndo, cheirosa, apressada, algumas com semblante carregado, outras felizes, carros velozes e ônibus como naves espaciais, com ar condicionado, tinham até televisão dentro, parecia um sonho.



Parecia, até serem acordados pela guarda municipal quando dormiam no chão da calçada da Rodoviária e postos de lá para fora sem destino, vagando pelas ruas, alimentados apenas pelo sonho de ter um cantinho com água, comida e trabalho para viver.


Depois de muito sofrimento conseguiram telefonar para Severino, pediram recursos pelas ruas até conseguirem o suficiente para as passagens de ônibus até o Rio de Janeiro, Severino os esperou na rodoviária Novo Rio e os levou para casa. Eram todos com olhares felizes e esperançosos, haveriam de ter trabalho, casa, uma vida decente e feliz.


Ao chegarem ao bairro perceberam que não era bem assim, a casa do Severino era bem modesta, melhor que a deles lá no nordeste, mas não era como imaginavam, na verdade, o Lote XV é bem proletário, um bairro dormitório onde todos trabalham na Cidade do Rio de Janeiro, constroem castelos para os reis, praticamente pagam por isso, pois o pouco que ganham mal dá para alimentação e transporte, mas o sonho de melhorar a cada dia é mais forte e quanto mais forte o sonho mais vontade se tem de trabalhar e conquistá-lo.



Seu Raimundo logo arranjou trabalho na construção civil, o irmão Cícero também, Lourdes e a mãe, dona Iracema se tornaram excelentes diaristas e logo conseguiram uma modesta casa de aluguel, mobiliaram e na medida do possível eram mais felizes que na seca.


Quando a saudade apertava muito iam para a Feira de Tradições Nordestinas em São Cristovam, se deliciavam com as comidas vindas de sua terra natal, bebiam e dançavam, tinha vezes que ela via seu Raimundo, um homem muito sério, olhando para o céu e sorrindo, parecia agradecer por esta vida sacrificada, mas honrada e na medida do possível feliz, uma vez o viu enxugando o rosto e perguntou por que chorava:


_ Quando tu já viste homem de minha qualidade chorar? Parece besta!


E saiu com o copo de caninha na mão para perto do palco onde o sanfoneiro tocava uma música do Gonzagão.



Tudo ia bem até Lourdes encontrar o amor nos braços do homem mais bonito que tinha visto na vida. O amor tem dessas coisas, quando se ama tudo é bonito e nada tem defeito. Esse amor a deixou com um filho no ventre, com um pai furioso, desgostoso, frustrado. Não era este o destino imaginado para a filha. Queria um noivado, um casamento na igreja, festa com forró até o amanhecer, indo dormir com o sorriso de quem veio do nada e venceu. Esse povo é assim, a vitória é trabalhar a vida toda, casar os filhos e ver os netos nascerem. Que povo lindo!


O filho de Lourdes nasceu, Severino renasceu no neto e parecia que o final seria feliz, só que este tal de amor às vezes aparece num coração só, é egoísta, quer a pessoa só pra ele, a pessoa tem que fazer o que ele quer, largar toda riqueza, todo outro sentimento de lado e o seguir. Assim aconteceu com Lourdes que por amor a Benício, um baixinho com lábia de poeta e jeito de artista. Deixou filho, família e trabalho, se enfiou no carro dele e foi parar num bairro pobre de São Paulo por dez longos anos.



Toda aquela novela que todos nós já conhecemos aconteceu, no início um amor incondicional rasgava sua alma, era só encostar um no outro que as labaredas da paixão subiam pernas acima e explodia num gozo tão feliz quanto o sentira da primeira vez, depois vai rareando, a barriga vai crescendo, Benício desaparecendo de casa, dormindo fora quase todas as noites com a desculpa de estar trabalhando, até sumir de vez, uma gravidez difícil e solitária, um parto sem choro e novamente dormindo na rodoviária de São Paulo.


A vergonha de voltar para a casa dos pais é grande, o orgulho de pedir perdão é maior que a necessidade, a trancos e barrancos conseguiu chegar a São Gonçalo, não se olha no espelho, tem medo de ver o quadro que o tempo, artista de Deus pintou em seu rosto e vaga pelas ruas dormindo nas calçadas. Às vezes não dorme com medo de ser molestada ou roubada, por não ter como se abrigar da chuva que ora vem por cima ora vem lavando as calçadas inclinadas.


O que mais me impressionou em sua história foi a força que ela tem em acreditar que existe um futuro, que vai trabalhar, conseguir uma nova moradia decente com conforto suficiente para ir buscar o filho, pedir perdão e leva-lo pra morar com ela. Que Deus a ajude.

Paulinho Freitas é compositor, sambista e escritor.






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